Crónica Desaforada

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Um balanço com azul para fechar


1. Não é bem um balanço do ano. Mais ao estilo de notas soltas, divaga-se aqui sobre o estado do Estado e da cidadania, a diversos níveis, escolhendo pegar nalgumas temáticas e sectores da sociedade que tem sido tema recorrente aqui no Café Margoso. Para reflectir, discordar, discutir, comentar, ir e voltar.

2. Cultura: o monstro adormecido, o diamante por lapidar, virou prioridade. Organizam-se fóruns, convocam-se os artistas, inauguram-se obras prometidas, dão-se conferências de imprensa, abrem-se sites, promovem-se galas, atribuem-se prémios e homenagens, discursa-se em cabo-verdiano. Tudo isso está muito bem. Mas é preciso questionar, sempre. Para que servem os fóruns? Como formar, incentivar e promover os artistas? O que fazer com as infra-estruturas inauguradas para além da já habitual privatização irresponsável ou promoção de uma auto-sustentabilidade desprovida de senso e contrária até ao discurso político? Nas conferências de imprensa e nos sites comunica-se o quê e para quem? As galas e os prémios são importantes e depois, o que fazer com o talento reconhecido? Onde está a política cultural? Falta cimento e sustentação a esta agitação toda, essa é que é essa. Sinal laranja, de preocupação.

3. Forças Armadas e Segurança: continuo sem entender para que servem as FA, nos actuais moldes. Mais de 90% das notícias de jornais sobre este sector são sobre sargentos que querem subir de posto; tenentes que almejam ser capitães; capitães que desesperam pela promoção ao posto de majores; os majores que acham que já deviam ostentar o título de coronéis; e estes a defender que é preciso que seja criada a superior categoria de general, por questões de compatibilidade protocolar com homónimos estrangeiros. E pergunta-se, para que serve tudo isto? Cabo Verde é um país em guerra? Com inimigos próximos ou desejosos de invadir o país? Para que serve o serviço militar obrigatório nos actuais moldes? Falta o que fazer a estes homens, e o país com tantos desafios pela frente. E o inimigo morando na nossa própria casa. Sinal vermelho, de desleixo.

4. Comunicação Social: mais jornais, mais televisão, mais rádios. Está melhor? Em alguns aspectos sim, mas muitos dos pecados originais continuam a ser cometidos. Falta de isenção, colagem político partidária demasiado evidente, ausência quase total de um jornalismo de investigação, televisão do Estado com os mesmos vícios e falta de qualidade de sempre, laxismo, desânimo, falta de perspectivas, jornais de referência com meses de férias, televisões privadas que fazem formações e anunciam aberturas sem ninguém se preocupar se à posteriori isso acontece de facto. Muita irresponsabilidade. Não sou jornalista, portanto como consumidor falo. E o cliente tem sempre razão. Ou não tem? Sinal laranja, de alerta.

5. Educação: apesar das polémicas, a Universidade de Cabo Verde aí está, institucionalizada, reitorada, instalada, programada e orçamentada. Cometeram-se erros? Inevitável. Qual o resultado hoje? Cabo Verde tem a sua Universidade Pública. Como todos os projectos estruturais e emergentes tem muito caminho para fazer, mas pelo menos já meteu pé na estrada. É uma realidade. Falta algo que me parece fundamental: controle de qualidade do ensino, não só na pública, mas sobretudo na privada. Só S. Vicente tem "pólos universitários" que nunca mais acaba! Quem controla tudo isto? Que ensino superior está a ser promovido em Cabo Verde? Os filhos dos nossos governantes estudam por aqui mesmo ou ainda vão para o estrangeiro? Sinal verde, de esperança.

6. Turismo: estão-se a cometer cá dentro os erros já mais do que diagnosticados noutras latitudes. No tipo de turismo promovido, no género de construções autorizadas, na mentalidade alimentada, nas questões ambientais não controladas, nos investimentos facilitados, nos terrenos vendidos ao desbarato. Sendo o turismo hoje um dos principais impulsionadores da economia nacional não deveríamos já estar a fazer diferente? Não deveriamos aproveitar o privilégio de ver quanto errados estavam os nossos vizinhos e fazer diferente? Se são os próprios vizinhos a vir cá dizer isso, não se percebe que não se seja mais criterioso e rigoroso em certos aspectos. Sinal laranja, de circulação em terreno movediço.

7. Obras Públicas: aqui um sector em plena expansão, muito graças à estrondosa vitória diplomática que representou o MCA. A evolução neste sector é inquestionável. Portos, Aeroportos, estradas, tudo isto está muito certo, mas é mais importante ainda não esquecer que quem utiliza tudo isso são pessoas. As pessoas em primeiro lugar, devia ser o lema. Sinal verde, de contra factos não há argumentos.

8. Blogosfera: um ano muito bom, como tem sido dito em vários locais. Criou-se o sentido de colectivo, que me parece extremamente positivo e de realçar. É tão claro que é mais o que nos une do que o que nos separa, mesmo que haja quem veja nisto uma maçonaria cuja vivência tem como único objectivo a promoção pessoal de uns quantos. Defendo que esta insinuação não faz qualquer sentido. Este será o princípio de uma nova era na participação cívica? Estou convencido que sim. Sinal verde, de acção participada.

9. Justiça: um ano negro que terminou da pior forma com a libertação de criminosos por motivos meramente processuais. E aqui todos são culpados. Todos. O Governo porque actua menos do que devia, a Oposição porque questiona da pior maneira, os deputados porque não se entendem num assunto de importância radicalmente superior aos seus interesses pessoais ou partidários, e ainda os magistrados, os juristas e, já agora, os cidadãos que exigem pouco e calam muito. Sinal vermelho, de vergonha.

10. Economia: elogiada até por quadrantes avessos ao actual poder, a Ministra das Finanças é já apontada como possível (e desejada) sucessora de José Maria Neves no cargo de Primeiro-Ministro de Cabo Verde. Percebe-se porquê. Naquela que é quase sempre uma das áreas mais contestadas, no arquipélago navega-se em calmas águas. A concertação social está a funcionar, a inflação controlada, a despesa pública vigiada, os salários pagos a tempo e horas, as reservas cambiais estabilizadas, os indicadores económicos longe do vermelho e a avaliação feita pelos tutores FMI e Banco Mundial tem tido sinal mais. Continuo sem perceber como é que os combustiveis continuam tão caros e desfazados do actual preço no mercado internacional e um pouco receoso desta aparente imunidade de Cabo Verde a uma crise global. Estaremos a Leste do Paraíso ou a Oeste do Inferno anunciado? Sinal verde, de acalmia, apesar de tudo.

11. Sonhos: termino com os sonhos de José Maria Neves, que é um poço de confiança e ainda bem que assim é, porque como já disse aqui, se ele não acreditar, quem acredita? Cabo Verde será, pois, "Praça Financeira Internacional", "Plataforma de Serviços", terá uma "Hub Internacional de Transportes", um "Centro Tecnológico Mundial" e, last but not least, as ilhas serão tranformadas num poderoso "Centro Internacional de Entretenimento Cultural". Cá por mim, que sempre acreditei que o sonho comanda a vida, estou a torcer para que tudo corra pelo melhor. Sinal azul, porque se Obama he can, nós também we can!


Mindelo, 31 de Dezembro de 2008




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4 comentários:

Anónimo disse...

Gostei da perspicácia da avaliação, de facto temos um país e um sonho. Só temos é de guia-lo bem. Erros existem e hão de existir o que importa é reconhecer os erros e buscar maximizar as ideias para solucionar os erros.

Unknown disse...

Ter um país e um sonho é um fantástico pressuposto, não é? Bela imagem, que resume o que escrevi. Abraço fraterno.

Nita Faria disse...

Perspicácia valiosa e a propósito.
Mas ... a SAÚDE? essa tão-desejada e procurada por todos nós.
Que sinal lhe atribuiu?
Abraço cordial e um óptimo Novo Ano

Unknown disse...

Nita, como eu disse, notas soltas. Seria demasiado extenso escrever um texto falando de todos os sectores da intervenção do Estado. A saúde pode ser avaliada conforme o ponto de vista. Por um lado, se compararmos com algumas realidades africanas, temos índices muito bons de desenvolvimento, as melhorias ao nível de hospitais e centros de saúde também me parecem evidentes. Mas as carências são mais do que muitas. Ainda. Muito está por fazer. Para mim, o mais grave, é a não existência de um hospital central na ilha do Sal, aquela que recebe mais turistas e onde uma infra-estrutura similar já foi prometida há longos anos.