Crónica Desaforada

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O Olhar de Fora

1. Gosto de actuar, de estar no palco. Mas o meu maior problema é que sou também o encenador das peças de teatro onde actuo. Quando da montagem da peça «A Última Ceia», onde estive como actor e encenador, o elenco tratou de me avisar para não me ir habituando. Precisam de mim, «do lado de fora», diziam eles;

2. Isto para dizer que muitas vezes, este «olhar de fora» é fundamental. Quando estamos «por dentro» só vemos determinados aspectos, uma perspectiva totalmente diferente - não necessariamente a mais certa ou errada. Mas se por um lado estar «por dentro» nos permite um maior conhecimento pela própria vivência, por outro, cria o perigo de nos colarmos a uma visão redutora, pessoalizada, apaixonante;

3. Assim, muitas vezes, o «olhar de fora» pode mudar a forma como vemos as coisas. Como homem do teatro isso para mim é muito claro. É um olhar que não está nem treinado nem anestesiado para que se veja apenas aquilo que se pretende ver. É um olhar descomprometido. O olhar da primeira impressão. E como sabemos, não há como uma primeira experiência de qualquer facto de vida, para nos marcar para todo o sempre. E como sabemos também, não há uma segunda oportunidade para se criar uma boa primeira impressão;

4. Vem isto a propósito da Crónica Desaforada do mês passado, «A Cidade e os seus Sintomas», e o desbravar de mágoas relativamente ao estado aparentemente triste da vida cultural da cidade do Mindelo. Foi escrita por alguém que aqui vive há 15 anos e portanto tem o olhar treinado. É uma visão «de dentro»;

5. Mas eis que sou surpreendido - ou talvez não - com um longo artigo acabado de publicar no último número da bela e conceituada revista «Rotas & Destinos», que trás uma chamada na capa que diz, nem mais nem menos, o seguinte: «Cabo Verde - como pode a cidade do Mindelo ter tanta animação?» Surpreendidos? Eu fiquei, mas o que ali vai escrito tem uma certa lógica. E tem o distanciamento frio e analítico de quem está «do lado de fora»;

6. O artigo, que ocupa 12 páginas com texto e muitas - e bonitas - fotografias da cidade e dos seus artistas (do fotógrafo Manuel Gomes da Costa), tem como título «Mindelo Terra Quente» e é assinado pelo jornalista João Ferreira Oliveira, que também me tinha entrevistado, na sua estadia na cidade do Porto Grande. Classifica o Mindelo como «cidade quente, cidade da morna, da música e das artes. Um microcosmos que só poderia existir em Cabo Verde mas que faria sentido em qualquer parte do mundo.»;

7. Vamos então destacar as partes mais interessantes deste texto. Começa com um parágrafo que enche de orgulho qualquer mindelense que se preze: «um país sem música é como um corpo sem sangue. Não tem vida. Seguindo este ângulo de abordagem não é preciso ser um médico especializado ou um melómano inverterado para nos apercebermos de que Cabo Verde emana saúde. O coração, a cidade do Mindelo, na ilha de S. Vicente»;

8. Claro que atribuir ao Mindelo essa qualidade cardiovascular, no que ao arquipélago diz respeito, é sempre discutível. Também a famosa morna de Jotamont, «Mindelo», o diz com todas as letras. Mas isso nem é muito importante, ainda que se possa não gostar muito da metáfora. Um coração, seja ele qual fôr, não vive por si só. E pode até estar doente. Além disso precisa de um corpo, de uma alma, de um pulmão, de um cérebro, de uma voz. Felizmente que não faltam em Cabo Verde lugares, ilhas, espaços para dar sentido a tudo isto;

9. «Ao Mindelo não se vem pela praia. Vem-se pela vida, depois é que se vai ao mar». Esta poética sentença dá continuidade ao artigo, que fala do «novo músico da moda», Toucim Bedj, que «tal com Abrunhosa, também nunca tira os óculos de sol» e escreve que «a culpa (positiva) desta personalidade artística e eclética pode muito bem ter os genes assentes no Porto Grande já que devido à sua estratégica posição geográfica, entre os continentes africano, americano e europeu, foi desde o século XVIII ponto de paragem de barcos, pessoas e tendências vindas de todo o mundo.» Já sabiamos disto, mas é sempre bom lembrar, desde que não sirva apenas para uma vivência saudosista que nunca levou a lado nenhum;

10. Continua a ronda pelos ícones da cidade: o Café Lisboa, «onde o mundo entra porta adentro, sem pedir licença»; ou a Casa Café Mindelo, «ponto de encontro de viajantes amantes de destinos alternativos, cabo-verdianos da classe média e mulheres de alta classe, numa osmose tão improvável quanto perfeita». Não se sabe se o articulista, nesta parte, se deixou entusiasmar pela beleza das nossas mulheres - o que é o mais natural - ou se está apenas a referir-se à posição social das mulheres que frequentam esse estabelecimento, já hoje símbolo da cidade;

11. A referência aos grandes eventos é inevitável. O Festival de Teatro Mindelact ou o Festival de Música da Baía das Gatas. E escreve: «quem está queixa-se de que deveria haver mais (não há sequer uma sala de cinema, tal como as salas de espectáculos são quase inexistentes), mas a verdade é que para quem chega há mais do que seria de esperar.» Depois continua a viagem, pelos bares e restaurantes com música ao vivo, dos novos valores, do Bau e do Voginha, «executantes de um estilo musical surpreendente», da Praça Amílcar Cabral e dos jovens que lá se encontram para «preparar a noite»;

12. Uma boa parte do artigo é dedicado aos artistas plásticos do Mindelo. Tchalé Figueira, Luisa Queirós, Manuel Figueira, Kiki Lima, Joana Pinto aparecem retratados. «Uma ilha pequena como São Vicente pode ser castrante, mas um atelier com a porta aberta para a rua e uma janela virada para o mar tem a dimensão do infinito.» Lindo, não é?;

13. O artigo termina com uma frase que mostra que o jornalista se encantou mas que procurou saber. Ou seja, fez o seu trabalho. «Também aqui o país, especialmente o Mindelo, estão de boa saúde, ainda que os mindelenses se queixem que tudo está mais calmo e que da loucura de outros tempos (recentes) restam apenas memórias. Quem diria...»


Este artigo, naturalmente, vale o que vale e não me faz retirar uma vírgula ao que escrevi há um mês atrás neste mesmo espaço de crónica. Mas que me fez bem ao ego, lá isso fez. Muitas vezes, no teatro como na vida, nada como um «olhar de fora» para nos fazer ver os outros lados que o mundo tem.

Mindelo, 28 de Junho de 2008


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10 comentários:

Adriano Reis (conta.storia@gmail.com) disse...

João, os meus parabéns pela Cronica,Para quem já leu o artigo embelezas-te ainda mais nesta crónica! Eu que lido todos os dias com os tugas tenho recebido rasgos elogios pelo o artigo da revista ROTA&DESTINOS,sendo mindelense sinto-me lizongiado.Até uma amiga disse-me que já não precisa de um roteiro turistico pq o artigo têm o que precisa!
No ultimos tempos a imprensa portuguesa têm vindo a dar destaque as nossas ilhas, no suplemente do Publico desta semana "FUGAS" trás um artigo na capa sugerindo a ilha de S.Antão como destino de fuga para férias:PÉS AO CAMINHO NUMA ILHA DE ANDARILHOS (21 de junho)um texto de seis paginas com fotografias fantásticas!
João, continua a ser um mindelense ferrém...

Unknown disse...

Grande Adriano. Resta informar que foi graças à generosidade deste rapaz que eu tive acesso ao artigo, já que foi ele que me mandou a revista de Portugal. Muito bom para o meu ego mindelense... Abr.

Fonseca Soares disse...

Adorei ler e ver o artigo... e apetece-me dizer que é sempre bom e necessário... relativisar as coisas!... muitas vezes esquecemos isso, e acabamos vendo as coisas com um olho só, quando são necessários no mínimo, dois!

Anónimo disse...

Entendo o que dizezs sobre o olhar de fora, João. Tenho essa experiência no teatro, embora pouca, muito intensa, penso que também por ter tido a oportunidade de trabalhar com pessoas de todas as companhias e grupos teatrais em actividade em S. Vicente. Mas estando como actor e encenador ao mesmo tempo, temos a oportunidade de ver e viver os dois lados.
Mas sobre a cidade e a sua actividade cultural, vejo mais com um olhar de dentro. E mesmo que sejamos bafejados com esses artigos que nos enchem de orgulho, temos que fazer muito mais porque a nossa imagem tem deser boa para os outros mas também para nós próprios. Assim estaremos mais sdatisfeitos e realizados. Quando falo em nós, com certeza que falo de todos os envolvidos, artistas, entidades, mecenas e a sociedade em geral. Sejamos motivo de orgulho para nós próprios. Com certeza que assim seremos sempre um modelo para muitos. Trabalhemos sempre e nunca nos desanimemos com nada.
E ainda nesta minha onda de citações deixo uma do rei do reggae - "Nunca cruzes os braços frente a uma dificuldade. O maior dos homens morreu de braços abertos".
Abraços fraternais

Unknown disse...

Ou três, Tchá, ou quatro, cinco, seis...

Adriano Reis (conta.storia@gmail.com) disse...

João,sempre que precisares? na boa! nós os visitantes é que agradecemos ao facto de teres lido e partilhado.Caso contrario seria uma tristeza enorme deixar esta obra de "arte literário" nos estantes da sua casa. Depois da tua ultima Cronica que talvez deixas-te algumas pessoas sem dormir, realmente o nosso ego mindelense esta em alta...

Álvaro Ludgero Andrade disse...

Até nisso Mindelo é único, João. Quem está dentro, pensa que nada rola por aí e que tudo está parado. Quem está de fora fica fascinado com o tanto que o pequeno Mindelo oferece. Eu, menino de Praça Nova, no ano passado quando estive lá por três dias comentei: "quanta actividade, quanta energia, quanta oferta nesta cidade??!! Ia de fora, da cosmopolita Miami. Por isso, como Soncente ka tem, nem flassa!!!!

Alvaro

Unknown disse...

é importante que este «orgulho de ser-se mindelense» não nos retire a capacidade de ver o que está mal e lutar contra isso. No seguimento, aliás, do que foi escrito na Crónica Desaforada antes desta. Digamos que as duas últimas crónicas, são representativas dos dois lados de uma moeda chamada Soncent. Abr.

Anónimo disse...

Falando por mim, pessoa nascida e criada em São vicente, só depois de estar vivendo um certo tempo longe é que passei a ver esse lado bonito do mindelo. Isto porque o vemos através dos olhos da saudade e da nostalgia. Contudo, uma coisa é certa, e é por isso que gostei muito da outra crónica, é preciso estar sempre consciente dos problemas que têm passado um bocado despercebidos, mas isto ñ implica perder o "orgulho mindelense", muito pelo contrário, por tê-lo é que ñ devemos ficar apenas como espectadores enquanto as coisas acontecem.

Unknown disse...

Naturalmente, Sisi. São os dois lados da mesma moeda.