Tertúlia dos Mentirosos 84

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"Vieram buscá-lo ao amanhecer. A luz clara e dura bateu contra seu rosto enquanto a mulher se debruçava na janela para vê-lo ir embora. Olhou quase com ódio para a mulher saciada depois daquela noite que suspeitavam a última. Mas ao ódio sucedeu a compreensão: ela não podia fazer nada. Entendendo que ela nada pudesse fazer além de olhá-lo desaparecer no fim da rua, sorriu e disse:

— Eu não vou voltar.
— Nunca mais? — perguntou a mulher.
— Nunca mais.

Ele sacudiu a cabeça repetidas vezes, irremediável. Não, nunca mais. Julgou ver um movimento qualquer de desamparo no canto da boca da mulher e novamente sorriu. Mas ela se manteve imóvel até que os guardas irritados o empurrassem com a ponta das espingardas. Ele sacudiu os ombros e saiu andando. A mulher ficou na janela observando as silhuetas que um sol recém- nascido espichava no calçamento de pedras irregulares. Depois fechou devagar os postigos, sentou-se na sala escurecida e sem compreender começou a chorar.

Mas ele voltou, um mês depois. Magro, cansado, faminto. Veio devagar pela mesma rua em que se fora, na mesma hora — e desta vez pisava a própria sombra, sem raiva, apenas voltando."


Caio Fernando Abreu in A Modificação



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3 comentários:

Et disse...

Eu li: "vieram buscá-lo ao amanhecer." (... )
Mas ele voltou, um mês depois. Magro, cansado, faminto. Veio devagar pela mesma rua em que se fora, na mesma hora — e desta vez pisava a própria sombra, sem raiva, apenas voltando."

Isto de "...,apenas voltando". Tocou-me: Não se vai. Nunca. Está-se sempre voltando!

Anónimo disse...

A PIDE fazia também assim. Só que muitos não voltaram:

"Vararam-te no corpo e não na força
e não importa o nome de quem eras
naquela tarde foste apenas corça
indefesa morrendo às mãos das feras.

Mas feras é demais.Apenas hienas
tão pútridas tão fétidas tão cães
que na sombra farejam as algemas
do nome agora morto que tu tens.

Morreste às mãos da tarde mas foi cedo.
Morreste porque não às mãos do medo
que a todos pôs calados e cativos.

Por essa tarde havemos de vingar-te
por essa morte havemos de cantar-te:
Para nós não há mortos. Só há vivos.

(José Carlos Ary dos Santos)

a) RB

ManuMoreno disse...

Quem sabe
sabe,
e eu que nao sei,
apetece-me ver...
reparar...ler...perceber
e tentar nao esquecer

ManuMoreno
Kel Abxom Di Kuraxom!!!