Crónica desaforada

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Laura no Teatro

1. A minha filha assiste a peças de teatro desde a tenra idade de 17 dias. Nascida a 17 de Agosto de 1997, tinha essa bonita idade quando pela primeira vez experimentou a sensação partilhada de se estar numa sala de teatro. Por coincidência curiosa, a peça, "O Romance dos Dois Soldados de Herodes", brilhantemente interpretada por Nelson Xavier e Via Negromonte, falava precisamente do homem que mandara matar todas as crianças com menos de dois anos de idade, peça que foi produzida na sequência do massacre de menores ocorrido naquela época na sempre violenta cidade brasileira do Rio de Janeiro.

2. Lembro-rne que, também por coincidência, foi por altura da evocação de Herodes por um dos actores numa das cenas da peça, que a pequena Laura começou uma choradeira, mais provocada pela fome e pela vontade de mamar, do que propriamente pelo chamamento de tão tenebrosa criatura. O próprio Nelson Xavier comentava, brincando, no final do espectáculo, que se notava logo que minha filha era urna pessoa com uma sensibilidade especial porque havia chorado exactamente no tempo certo.

3. Desde aí nunca a minha filha deixou de ir ao teatro e assistir a todo o tipo de espectáculos, porque estou cada vez mais convencido que isso só lhe pode fazer bem.

4. Todos sabemos que os códigos das crianças são necessariamente diferentes dos nossos e portanto reagem ao conjunto de imagens e sons que compõem um espectáculo teatral de forma completamente distinta da de um adulto. Riem e reagem quando os adultos estão calados, ficam impávidas e serenas quando os mesmos adultos libertam uma sonora gargalhada.

5. Uma vez fizeram uma experiência: num espectáculo teatral, do chamado "teatro para adultos", várias crianças foram colocadas em locais diferentes da plateia, mas perfeitamente localizáveis. Ou seja, não estavam todas em grupo, numa espécie de gueto infantil, para não se deixarem influenciar nas suas reacções e assim poderem aparecer mais espontaneamente.

6. E foi curioso verificar que aconteceu precisamente o que atrás referi: as crianças reagiam em uníssono em situações que deixavam os adultos sem reacção. Do mesmo modo, muitas das reacções dos adultos, não eram acompanhadas pelas dos espectadores mais pequenos. Verificar como uma criança reage a um espectáculo de teatro é uma lição, para além de agradável, extremamente eficaz, para quem pretende fazer do teatro a arte do pormenor e do instante.

7. Por isso sempre levei a minha filha Laura também para alguns ensaios e ela tem sido importante para a avaliação do trabalho em construção. Não existe espectador mais sincero que uma criança: se se chateia, mexe-se, levanta-se, vira-se para trás, vai embora, começa a fazer barulho, desinteressa-se. Se pelo contrário aquilo que vê lhe interessa, é o espectador mais concentrado do universo. Assim por exemplo, quando improvisamos determinadas situações em ensaios, a menina serve quase como barómetro da potencialidade do trabalho desenvolvido pelos actores: a minha filha Laura transforma-se num "instrumento de trabalho": é o Laurómetro.

8. Esta habituação ao cerimonial do teatro, e a todos os códigos a ele inerentes tem transformado esta criança num bom espectador de teatro. Nunca a vi a falar alto perante uma sala escura, sendo ela que muitas vezes se volta para o lado e com o dedo indicador colocado transversalmente entre os lábios aconselha o parceiro a silenciar-se, a comportar-se como deve ser... Quando não «se comporta» há qualquer coisa que está errada. E não é na plateia.

9. Curioso verificar que o espectáculo em que a Laura mais se aborreceu (e com razão, coitada!) e em que foi para mim difícil controlar a sua ansiedade de se querer mexer e ir embora, foi precisamente numa peça do chamado “teatro infantil", que assistiu juntamente com mais duzentas crianças de vários jardins infância na cidade do Porto. Mas ela tinha toda a razão, o espectáculo era muito mau.

10. Principalmente porque ao mesmo tempo que praticamente desprezava o público ali presente, não comunicando, não olhando, não transmitindo nada a ninguém, tratava as criancinhas da pior forma possível e como geralmente são consideradas no designado teatro "para a infância”: um bando de atrasados mentais que ali estão incapazes de entender uma linguagem que não seja ultra exagerada, infantilizada. Como se as crianças falassem assim umas com as outras!

11. Resultado: foi um desastre, todos os meninos num repente descobriram que uma vontade de ir à casa de banho seria o suficiente para as tirar daquele pesadelo e foi vê-Ias, com as educadoras desesperadas, em fila, saindo da sala, para o salvador xixi! No fim, as palmas, também elas muito sinceras - porque o espectador-criança não mente - mas mais pelo alívio do final do espectáculo do que pelo próprio, que desse, não ficará a história na memória das crianças presentes, incluindo na da minha Laura. Felizmente.

12. Isto tudo para dizer duas coisas, em jeito de provocação: primeiro, um mau espectáculo de teatro visionado na tenra idade, mais do que qualquer outra consequência, afasta o público mais novo do teatro. O masoquismo não faz parte, que eu saiba, das características das crianças, ao ponto de as fazer querer voltar a viver uma experiência que tenha sido desagradável e desinteressante, para não lhe chamar outra coisa. Fazer teatro para crianças implica um grau de preparação e responsabilidade (ainda) maior do que deve ser reservado ao teatro para adultos.

13. Segundo: há gente irresponsável e mal preparada neste país, animada pelo ditado que «em terras de cegos quem tem olho é Rei», que anda a fazer um «teatro infantil» miserável, e cuja principal consequência será afastar irremediavelmente as crianças do teatro. Aliás, já a minha mãe me dizia, «não existe essa coisa do "teatro infantil". Fica sabendo que só considero dois tipos de teatro, o bom teatro e o mau teatro.» O resto, é conversa.


Mindelo, 15 de Abril de 2008




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9 comentários:

Anónimo disse...

Um bom desabafo,não sei porque acho que consegui descrutinar o destinatario do Paragrafo 13,eh eh comentario ao paragrafo 13 :Pior que Zaroi, é gente sem imaginação, ou de imaginação reduzida..

Fca cool e keep posting (ja agora ondé qués ta vende ess chazinho de posts? pora ,admiro a tua frequência de postagem,visito muitos sites e blogs, mas esse de bossa têm uma frequencia(qualidade incluido) diabolica eh eh eh

Unknown disse...

Hiena, quem quiser que enfie a carapuça, mas que há muito boa gente a comprar gato por lebre, isso há! Ess cházinho, já agora, é nha aperitivo para o almoço!

Anónimo disse...

ah ah ah de facto é verdade...mas bom, agora pessoal ca têm desculpa, pelo menos jàs foi avisode que "ta que produto mau na mercado",comprà quem qu' é dode ou que ta graça de ser inganode( ao fim ao cabo é mesma coza)
Hiena

Unknown disse...

«Boka, kalá»...

Anónimo disse...

eh eh eh

Alex disse...

Pois é João, o problema não é tanto ter a coragem de se dizer o que é, bom ou mau teatro, boa ou má literatura, boa ou má música, etc., e definir-se uma fronteira, mas dar às crianças, desde muito cedo, os apetrechos críticos para que sejam elas, cada uma delas, a fazer essas escolhas.
Daí o meu apelo a um ensino e a uma educação, plural e alternativo, que não se destine apenas aos saberes e competências técnico-científicos, mas também aos sabores outros, aos outros olhares, às outras escutas, numa palavra, à poesia do mundo.
E esta nova pedagogia, não começa no berço e acaba na cova. Não. Vai de berço-a-berço, num vínculo partilhado entre gerações. Mas o mundo não é perfeito (oiço os cínicos). Pois não. Mas podemos ir tentando. Cada ser humano é a sua própria revolução!

ZC

Unknown disse...

Nem mais, ZCunha, nem mais...

Anónimo disse...

Pois é João, as crianças têm uma sensibilidade diferente e conseguem ver para além do óbvio. Desta forma, tudo o que é feito para elas exige um cuidado diferente, na medida em que elas também têm uma enorme capacidade de gravar o que lhes desagrada e rejeitá-lo no futuro. Contudo, tudo que é feito para um público, seja ela infantil ou não, deve ser bem feito, com responsabilidade e respeito para com aqueles que consomem o produto final.

Unknown disse...

Sisi, tens razão. Mas aqui o problema é que as crianças não tem o direito (o poder; a capacidade?) de livre arbítrio. Não podem ler no jornal que vai acontecer teatro em tal sitio e dizer, ali não vou porque aquilo é uma porcaria... Na verdade, tal como acontece com muitas outras áreas culturais (nomeadamente a musica e o hábito de leitura), elas vão para onde a corrente (leia-se, educadores, pais, professores, etc) a levarem. E na maior parte das vezes, não vão para «porto seguro»... É a socialização que temos.