Crónica Desaforada

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Impressões digitais de dias partilhados

1. Uma abertura muito cerimoniosa, montada e encenada como manda o Protocolo. Uma peça de teatro, com todos os ingredientes. Belos discursos. A necessidade de homenagear parceiros e amigos do festival Mindelact. Não custa assim tanto de vez em quando ser um bocadim mais sério.

2. Distribuição de camisolas do festival, imagem de marca, para todos os artistas e voluntários, que compõem o grosso das pessoas que trabalham para este evento. Este momento é importante porque estamos a falar dum conjunto de pessoas que trabalha por «amor à camisola». No sentido literal e metafórico do termo.

3. O dia Raiz di Polon, com a peça de abertura, a estreia do belo trabalho a solo de Beti Fernandes e a entrega do Prémio Copacabana. Os nossos bailarinos rastas vestidos de preto foram o centro do Universo nesse dia. E ficaram muito bem na fotografia. Mano Preto, Mano Branco.

4. O boneco Stan e os seus problemas existenciais. Um espectáculo inesquecível e provocador, com Jim «Fucking» Barnard, inglês fanático por desporto e que acordou Tchalé Figueira às tantas da manhã para poder ver um jogo de tenis num canal cabo. A «f» word ecoou no auditório do CCM pela boca de Stan e a conteporaneidade entrou-nos pelos olhos adentro.

5. A simplicidade de um mimo africano, oriundo de um país improvável chamado Guiné Equatorial, onde se fala castelhano e se explora petróleo. Nós que aprendemos que a Branca é de neve e os mimos são brancos que nem marfim, nem que para isso se tenham de pintar, para ficar ainda mais brancos, ficamos encantados com essa imagem de um mimo preto, com uma técnica que deixou todos de boca aberta. Marcelo, volta sempre.

6. Praia e Mindelo no palco e a Lua de Bento Oliveira. A Lua do Bento. Adereço central da peça que juntou duas companhias, duas cidades, duas artes e unificou um país. Atrevimento. Máscaras. Drops chupados em uníssono. Texto falado no ouvido das pessoas, como um segredo a desvendar. O amor pairou e o público saiu flutuando, como se não pisasse o chão.

7. Entre eleições e a arte escolheram a arte. Vieram de Luanda, animaram o Mindelo e apresentara-se dentro, por debaixo e em cima de um simples andaime, peça única do cenário. Suor, músculos, fumo de cigarros e muito calão. O teatro angolano vive um bom momento, não tenho dúvidas disso.

8. O significado da palavra generosidade está estampada nos rostos dos brasileiros que vieram de S. Paulo, que mesmo não tendo conseguido a verba necessária, ofereceram dois espectáculos memoráveis, na rua para o povo, na sala para o povo. O colectivo. A celebração. O humanismo. O brilho nos olhos da Fernanda. O sorriso da mineirinha. A voz de trovão do narrador. E um desenho de luzes que é um conto de fadas.

9. Já não se ouvem histórias como antigamente. Que pena. As crianças gostam, querem, os pais trazem e ficam para ouvir. Na «solêra de porta» improvisada no pátio do Centro Cultural do Mindelo, ecou de novo aquela frase tão característica: «estórea, estórea, fortuna do céu, amém». Que pena a porta aberta estar a ser substituída pelas grades nas janelas!

10. E por falar em histórias. Era uma vez um rapaz. Inscreveu-se num curso de iniciação teatral. Acabou fazendo parte da outra história, aquela que tem um hagá grande, interpretando o Romeu crioulo de Ribeira Bote. Hoje é um actor conceituado em Portugal, profissional em todos os sentidos da palavra e veio para estar duas horas em palco interpretando um Ptolomeu Rodrigues humano, desbocado, divertido, alcoólico e marinheiro. No final, os elementos da companhia portuguesa fizeram questão de deixar o palco ao Flávio Hamilton para os aplausos dos seus. Ouvi dizer que houve gente que chorou. O teatro tem destas coisas.

11. Uma cama velha desenterrada num cemitério de cenários velhos. Uma instalação no Kanalim do rapaz atrevido que faz programas de televisão e escreve crónicas sujas e que veio para conhecer in place que raio de mistério é esse chamado mindelact. Nada como estar realmente. Ou melhor, fazer parte. Está conquistado. Vai escrever uma peça de teatro. Foi contaminado. E este virús nunca mais sai. Felizmente.

12. Aquelas imagens paradas que temos por hábito ver nas grandes cidades. Actores, performances, maquilhados com mestria, compõe e fazem as estátuas das grandes metrópoles. Crioulos nesse papel? Estranho. Mas foi assim. Onze estátuas. No Mindelo. Treinadas e coordenadas por um recordista do Guiness de quietude artística, que tem também recordes de generosidade e sorrisos. As obras e as casas das madames já tem alternativa para estes artistas, no caso da coisa correr mal em terra longe!

13. Um fim é sempre meia morte. Anunciamos um novo começo, mas fica sempre um amargo de boca porque se está chegando ao último suspiro. Um pátio cheio de gente que acabara ouvindo uma intervenção generosa do Ministro da Cultura, admirado pela onda de gente orgulhosa do seu festival. Portugueses, italianos, brasileiros, crioulos de todas as ilhas e proveniências dançaram e beberam juntos. O Dionísius das procissões orgiásticas da Grécia clássica não faria melhor.

Mindelo, 15 de Setembro de 2008


Fotografia: Anselmo Fortes




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7 comentários:

Cesar Schofield Cardoso disse...

E eu tirei várias lições: (não é que não sabia algumas):

- Quando se é convidado para um evento, ou se está ao nível, ou não se está. Se não estiveres, declina o convite, que ficas melhor na fotografia.

- Que essa merda de ser amador em CV precisa acabar. Como amador estamos sujeitos a não ficar bem na fotografia.

- Que sou um chato do caraças e detesto não ficar bem na fotografia.

- Que o Mindelact é definitivamente um oásis no deserto das artes em CV.

...Por tudo isso (a minha msg será enigmática para muita gente) fico orgulhoso que tal evento aconteça na minha terra; não fico orgulhoso que o Ministro da Cultura tenha feito o encerramento; fico orgulhoso que se consiga ainda fazer um festival de tamanha estatura, com metade da equipa amadora.

Um abraço a todos

Unknown disse...

Caro Cesar, concordo com os comentários, mas nem tanto com a motivação para estes, de indole pessoal, como facilmente se percebe. A tua fotografia poderia ter saido melhor, mas nem por isso não deixou de ser mais um motivo de orgulho do evento. Toda a componente das Artes Plásticas no festival merece ser mais cuidada ou então estou como tu, não vale a pena fazer só para dizer que se faz. Aprendi também contigo, acredita. Para o ano será melhor.

Aquele abraço e um enorme obrigado!

Anónimo disse...

Fiquei emocionada ao ler-te... conseguiste transmitir um bocadinho daquela energia produzida..., um bocadinh mas o suficiente para ficar toda arrepiada!

PARABÉNS!

Anónimo disse...

Para nós que assistimos o festival de teatro daqui da Praia, ficamos sem saber qual foi o papel do César no evento. Qual foi?
Temos de convidar SEMPRE o Ministério de Cultura, quem sabe eles vão aprendendo e vendo que mesmo com poucos recursos poderemos fazer grandes eventos aqui em Cabo Verde, tudo é uma questão de empenho, força de vontade e TamBém saber fazer.

Abraço

Unknown disse...

Catarina, e é tão dificil colocar em palavras momentos tão intensos!

Katy, o Cesar montou uma exposição sobre o trabalho realizado com a peça «Quem Vai Ser Esta Noite?» montada o ano passado, e muito bem documentada. Tentamos colocar e mostrar um pouco do universo plástico do espectáculo e com montagens feitas a partir de fotos, dar a entender o que foi essa processo. Era para ter imagem e som, mas não foi possivel. Compreendo a frustração do Cesar, podiamos ter feito mais. Mas o rapaz exagera!

Abraço

Anónimo disse...

Já deixei as sementes da minha quietude em muitas coordenadas desta bola em que rodamos, mas ter tido 11 alunos, tão querendo saber, tão simples, tão dedicados, foi só no Mindelo! Estar no meio deles, actuando, na doca da Enapor foi uma alegria, estar a vê-los, já comigo em movimento, ali parados, com o que comigo apreenderam da arte que está entre o nascimento e a morte, e que é o início de qualquer movimento, encheu-me de orgulho! Obrigado estátuas vivas do Mindelo, continuem a lavrar os campos das artes! Obrigado Mindelact!
Antonio

Unknown disse...

Obrigado António! Mil vezes obrigado!