Tertúlia dos Mentirosos 77

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Merteuil: Gritante? O que é que esta mão paternal, Monseieur, procura nas partes do meu corpo que a madre superiora me proibiu que fossem tocadas?

Valmont: Que pai?! Deixa-me ser seu padre: quem é pai mais do que o padre, que abre as portas do paraíso para todos os filhos de Deus? A chave está nas minhas mãos. Impõe-se a pressa: antes que a sobrinha vire tia, ela deve aprender a lição. De joelhos, pecadora. Conheço os sonhos que passeiam por seu sono. Arrependa-se e transformarei seu castigo em clemência. Não tema por sua virgindade. A casa de Deus tem muitos aposentos. Só é preciso abrir estes lábios assombrosos e já voará a pomba do Senhor para entornar o Espírito Santo. Ela treme de ansiedade, está vendo? O que seria da vida sem a morte diária? Fala com a língua angelical. Você disse: virgindade. O que chama de virgindade é uma blasfémia. Ele só ama uma virgem, para o mundo basta um redentor. Acredita mesmo que este corpo dócil foi-lhe dado somente para ir à escola, às escondida dos olhos do mundo? Se quer saber onde mora Deus, confie no palpitar das suas coxas, na vibração dos seus joelhos. Uma membrana evitaria que fossemos um corpo? A dor é efémera e a alegria perpétua. Quem traz a luz, não deve temer as trevas: o paraíso tem três entradas. Quem recusar a terceira ofende a Santíssima Trindade.

Merteuil: Você é muito atencioso, senhor. Sou muito grata porque pôde me mostrar, com tanta persistência, a morada de Deus. Lembrarei de todos os aposentos e cuidarei para que o fluxo de visitantes não cesse e para que Seus hóspedes se sintam em casa, enquanto houver respiração em mim para recebê-los.

Valmont: Porque não um pouco mais? Alguns hóspedes terão necessidades especiais. O amor é forte como a morte. No final, a mulher tem só um amante. Ouço o estrondo da batalha, com o qual os relógios do mundo golpeiam a sua beleza indefesa. O simples pensamento deste corpo magnifico estar exposto às dobras do tempo, esta boca ressequida, estes seios murchos, de ver este colo enrugar, corta tão profundamente a minha alma que ainda considerarei a profissão de médico e quero lhe ajudar a alcançar a vida eterna. Quero ser a parteira da morte, que é o nosso destino em comum. Quero por as minhas mãos que amam no seu pescoço. Quero libertar seu sangue da prisão das veias, as vísceras do jugo do corpo, os ossos do sufoco da carne. Senão como poderia tocar com as mãos e ver com os olhos, o que o envoltório efémero tira da minha vista e do meu toque? Quero libertar o anjo que mora no seu corpo para a solidão das estrelas.

Henri Muller in Quarteto

Fotografia de Vadim Stein




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1 comentário:

Unknown disse...

Resumindo: há que libertar o anjo para libertinar o corpo!
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