Ficção Cafeana

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O homem sentiu uma estranha dor de cabeça. Um mal estar terrível. De imediato se dirigiu a um centro de saúde, onde foi visto, numa primeira fase pelo médico de serviço. Os sintomas e as estranhas manchas azuis que lhe foram aparecendo na ponta do nariz, induziam que se poderia tratar de uma doença nova, algum tipo de virose nunca vista por aqueles lados. De imediato, mais pelo dado científico invulgar do que pela preocupação humanitária, se reuniu uma junta médica composta pelos maiores especialistas para um diagnóstico mais profundo. Exames mais rigorosos foram feitos, especialistas ouvidos, organizou-se mesmo um Fórum sobre o homem das manchas azuis no nariz. Nesse encontro, onde os maiores cérebros nacionais e internacionais se juntaram para analisar o caso, foram feitas várias recomendações e uma conclusão importante: o diagnóstico estava feito e 40 medidas, entre paliativas, de precaução e curativas, com remédios, doses e efeitos secundários perfeitamente definidos. Mas como não havia ainda a certeza das causas e do grau de contágio de tão estranha enfermidade, as autoridades centrais optaram, e assim anunciaram com toda a pompa e circunstância, por elaborar, num prazo de seis meses, um Plano Estratégico de Combate às Doenças Cromáticas. Um plano destes é sempre bem-vindo, concluiu-se, até porque nunca se sabe o que pode acontecer e mais vale prevenir do que remediar, diz o povo com a sabedoria que lhe é peculiar.

Mandaram o homem das manchas azuis para casa. Ele foi. Passaram seis meses e ele achou estranho que nunca mais o tivessem contactado. Do tal plano estratégico, nunca mais ouviu falar. As dores de cabeça aumentaram, as manchas alastraram a outras partes do corpo, o mal-estar tornara-se insuportável. Telefonou para o centro de saúde responsável pelo seu caso mas ninguém estava disponível para o atender. O senhor doutor neste momento não está, lamentamos. E quando o poderei encontrar, o caso é urgente. Ah é urgente? Mas o que não é urgente neste país? A verdade é que não estavam, porque nessa mesma altura estava tudo participando activamente numa mesa redonda sobre as potencialidades da aspirina e a possibilidade de uma fábrica deste remédio global poder vir a ser montada algures em Ribeira da Torre, foi o facto mais importante do encontro, o que teve grande eco na imprensa cabo-verdiana, com uma manchete a toda a largura das primeiras páginas: "o nascimento da aspirina crioula". Um investimento importantíssimo para o país e que poderia mesmo, quem sabe, alterar por completo o panorama da saúde no arquipélago, anunciou com entusiasmo mal contido o senhor Director Geral do sector.

Passaram mais alguns meses e o homem já estava todo coberto de manchas e as dores eram tão insuportáveis que ele já nem conseguia ver a luz do dia. Enfiado em casa há semanas sem respirar o ar da rua, tornara-se um autêntico bicho, sujo, abandonado, quase um autêntico homem das cavernas na sua própria casa. Prometeram-lhe enviar os remédios, mas nunca recebeu nada. Asseguraram-lhe que iria receber um completo e pormenorizado plano, com referência a dieta e exercícios próprios referenciados, mas até àquele dia não recebeu nada. Desesperava perante aquele abandono. Foi então que ouviu no noticiário das treze da rádio nacional que um comité especializado universitário em doenças-que-provocam-manchas-coloridas-em-superfícies-cutâneas havia sido contratado pelo Ministério da Saúde para o estabelecimento de um Plano Nacional de Combate às Doenças Cromáticas. Ouviu aquela notícia, respirou uma, duas e três vezes e caiu no chão, vitima de um ataque cardíaco fulminante. Felizmente, foi esse o seu último pensamento, doei o meu corpo à ciência. Que façam bom proveito!




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10 comentários:

Unknown disse...

Por azar, ninguém se lembrou de perguntar ao Pinto da Costa...Manchas azuis só pode ser pigmentação portista, carago!
Zito

Tchale Figueira disse...

Bnite e triste texto.

Lembrou-me aquelas pessoas que marcam consultas no hospital... seis meses um ano depois o fulano (a) é chamado para a consulta mas há muito bateu as botas.

A outra parte é a mafia dos "remédios" que manipulam a seu bem querer a s pessoas, inventando doenças que são divulgadas globalmente pelos midias, e toca todo o mundo a comprar remédio contra a Gripe das aves, porcina, canina, putina, etc etc et. Belo texto

Unknown disse...

Eu acho que o pessoal não percebeu o que quiz dizer eu com este texto...

gatunix disse...

eu pensei a mesma coisa q o tchale, e mais pareceu-me q essas pessoas depois de mortas os corpos estao nos mesmos hospitais pro bem da ciencia a espera da mesma consulta :D.

JB eu percebi assim mais pela imagem e pelo inicio do texto,mas agora deixaste-me confuso...

Unknown disse...

É uma metáfora à actual situação da política cultural do Estado. Um ano depois de um Fórum onde foi feito um amplo diagnóstico sobre a situação, a todos os níveis e com participação dos agentes culturais, foi anunciado um Plano Estratégico Cultural no espaço de seis meses. Um ano depois, foi entregue, por um concurso (concurso? como? quando? onde foi anunciado?), a uma universidade privada, um estudo, chamado Plano Estratégico, onde se vai... fazer o diagnóstico da situação! Se isto não é brincadeira de mau gosto, não sei o que é.

Tchale Figueira disse...

AS VEZES É NECESSÁRIO NÃO ABUSAR DAS METÁFORAS. O POST DE HOJE É PERFEITAMENTE CLARO.

CULTURA É UM BURRO EM AGONIA E O SEU MÉDICO M.VEIGA NADA ENTENDE DE MEDECINA CULTURAL.

Unknown disse...

Nem sempre o caminho mais directo é o que tem melhor paisagem... Digo eu, claro!

Anónimo disse...

Quando o escritor tem de se explicar e legendar o escrito então...esse escritor sera na melhor das hipotes um bom..encenador! César

Unknown disse...

Tens toda a razão, César. Por isso mesmo a etiqueta diz "manias de escritor". Vá lá, podia-me dar para coisas piores...

Santiago Mbanda disse...

A mim veio à mente "O Pensador".
O "último pensamento"... Desconheço da realidade e da política que se vive em Cabo Verde, mas como agora tenho na minha vida pessoas próximas naturais dai tornou-se um interesse.

A cultura cabo verdiana, talvez esteja longe de ser medicada.

Como vos entendo....

Great blog.:)