Crónica Desaforada

17 Comments


Frente e Verso, os dois lados da moeda

1. Quando escrevi uma crónica desaforada sobre o Mindelo de hoje, desiludido com os caminhos, as decisões, as ausências, os vazios, as invejas, as riolas, as escolhas, as rasteiras, o jogo sujo, a ambição, os umbigos, estava longe de adivinhar que alguns dias depois receberia uma revista, escrita por um jornalista português que veio ver e conhecer um pouco da cidade, e cuja imagem foi totalmente contraditória com o que havia acabado de escrever. Mindelo era, afinal, um paraíso.

2. Isto para dizer o que todos já sabemos: uma moeda tem dois lados, sempre. A existência do Paraíso, pressupõe que o Inferno ande por aí, a espreitar a cada esquina. Não vale a pena querer pintar o mundo cor-de-rosa, quando todos sentimos que o futuro é negro. Não vale a pena andar a chorar sobre o leite derramado, porque é com acção, no terreno, que se consegue lutar contra o que acreditamos estar mal. Pelo menos tentar.

3. Por isso mesmo é sempre interessante ouvir os debates sobre o «Estado da Nação». Também neste caso a globalização parece ter feito das suas, uma vez que estes debates não variam muito de país para país. Para o Governo o país está «no rumo certo»; para a Oposição é fundamental «mudar de rumo»! Está certo que nalguns parlamentos a discussão chega a vias de facto, e todos nós já vimos cenas de pancadaria da grossa entre ilustres deputados de um qualquer país asiático, coisa que nunca aconteceu por estas paragens. Mas já estivemos mais longe.

4. O lado escuro e o lado claro. A noite e o dia. O podre e o puro. Somos tudo isto num só país e os debates e opiniões sobre o estado de coisas em Cabo Verde é prova disso mesmo. O optimismo do Primeiro Ministro de Cabo Verde é perfeitamente natural, justificado e até exigível. Faz parte da sua função enquanto chefe do Governo passar uma mensagem de optimismo, crença num futuro melhor, de um caminho glorioso rumo ao desenvolvimento para todos e cada um de nós. Se ele não acreditar, quem vai acreditar?

5. Uma das formas para se medir o Estado da Nação é recorrendo à matemática e à estatística. Os políticos gostam muito de números. Quem vê números não vê caras, muito menos corações. O interessante é que num mesmo relatório podemos ter o paraíso e o inferno caminhando lado a lado. A inflação foi X? Mas o desemprego subiu Y! As importações aumentaram desmesuradamente? Mas os índices de desenvolvimento estão melhores do que nunca! Inferno e Paraíso convivendo na mesma página de um qualquer relatório do FMI ou Banco Mundial!

6. Ficamos a saber, por estes dias que em termos de economia, as coisas até que estão a caminhar como deve de ser. Pelo menos é assim que dizem os senhores dos números: «Apesar de entrarmos no 2º trimestre de 2007, com uma situação de crise com a desvalorização do dólar, o aumento de preço de petróleo e dos cereais, a nossa economia, conseguiu crescer 7%, devido uma forte procura interna, com uma taxa de execução do investimento público de 83% e pela 1ª vez conseguimos ultrapassar a barreira dos 13 milhões de contos», é o que se pode ler num extenso artigo de Fernando Robalo publicado na Semana Online.

7. Mas por outro lado, ouvimos estes números e perguntamos: crescemos 7%? Mas como, se o meu salário não cresce nem metade disso e ao mesmo tempo os preços dos bens essenciais também crescem à mesma velocidade? Forte procura interna? Para quem pode! Quem vê os carrões que circulam pelas ruas da capital, os palacetes que andam a ser construídos por aí, as jantaradas e grandes festas onde se come e bebe do bom e do melhor, pergunta-se, assim como quem não quer a coisa, e não sem uma pontinha de inveja: dondé ke tita bem toda essa bufunfa?

8. Diz ainda o citado artigo: «Os indicadores de desenvolvimento económico de Cabo Verde demonstram uma evolução positiva, tendo o resultado no crescimento do PIB per capita, na redução da pobreza absoluta e na melhoria de qualidade de vida dos Cabo-verdianos (ver último estudo do QUIBB 2007) sendo certo que os Cabo-verdianos vivem em condições de conforto superior da década de 90.» Muito bem, está explicado o tal optimismo do nosso Primeiro Ministro, mas a verdade é que quando andamos por aí, e vemos o nosso Cabo Verde com olhos de ver, há qualquer coisa que não bate certo.

9. O povo não anda contente. O espírito de morabeza está a desaparecer e em troca estamos a assimilar aquele espírito do quanto mais melhor e cada um por si, porque já dá muito trabalho cuidar de mim, quanto mais dos outros. A filosofia da porta aberta extingui-se. Agora, vêm-se é grades nas janelas. Como falar em estar a brindar com os amigos calmamente num boteco se hoje um tipo entra num bar, na maior das calmas, com o objectivo de espetar dois tiros na cabeça de um outro, num qualquer ajustes de contas ligado ao tráfico da droga?

10. As infra-estruturas estão a melhorar. Há mais alcatrão. Mais aeroportos. Mais hotéis. Há mais telefones, carros, televisões, vídeos e aparelhagens por cada 100 habitantes. A qualidade de ensino tem um nível razoável e a luta contra a alfabetização é uma das maiores vitórias deste nosso arquipélago. Mas como lutar contra esse outro analfabetismo, o cultural, num país onde o acessório parece ser mais importante que o essencial, onde a embalagem tem maior influência que o conteúdo, onde o aspecto físico sobressai sobre as capacidades intelectuais de cada um, onde a esperteza e o expediente leva a melhor sobre o mérito?

11. Haverá esperança num país onde praticamente ninguém lê? Mas como se explica que nas aberturas das feiras dos livros, assistamos quase sempre a essa avalanche de gente, ávida, esfomeada de livros, de romances, de estudos, de poesia? Como se explica que num país onde a qualidade dos serviços públicos é deplorável, onde as pessoas nalguns locais já tem medo de sair à rua, onde o comércio tradicional e personalizado das pequenas mercearias de famila é substituído por um outro comércio selvagem e predador, venha ele da China ou de Portugal, se continuem a produzir das mais belas composições musicais do planeta?

12. Diz o mesmo texto que tenho citado aqui que «a erradicação da pobreza e da exclusão social é indiscutivelmente um dos principais desafios do desenvolvimento e dos direitos humanos do nosso século, havendo uma consciencialização crescente que é imperioso conciliar o desenvolvimento económico com a coesão e justiça social.» Isto é tudo muito bonito de ler, mas não estamos todos cansados de saber que quando vem mais riqueza, vem também mais exclusão? Que quando vem mais desenvolvimento aumenta o fosso entre os mais ricos e os mais pobres? O que fazer perante este quadro tão contraditório?

13. No fundo, temos que pensar que não somos assim tão diferentes dos outros países do Mundo. Temos os nossos problemas a resolver, as nossas virtudes a publicitar, as nossas tradições a preservar, as nossas riquezas a explorar. Temos os nossos monstros que nos ameaçam debaixo da cama enquanto dormimos e é preciso lidar com eles. O tráfico de droga existe. A lavagem de dinheiro existe. A pobreza extrema existe. O individualismo crescente existe. Uma das frases mais óbvias já ouvidas é aquela que nos diz que o primeiro passo para a cura de uma doença é aceitar que ela existe. E partir para a cura, com optimismo, sabedoria, conhecimento, generosidade. Porra, se Cabo Verde chegou até aqui até onde mais nos poderá levar?


Mindelo, 31 de Julho de 2008




You may also like

17 comentários:

Unknown disse...

Confesso que não esperava este silêncio da clientela com o presente «desaforo», mas pronto. Deve ser dos orgasmos! hehe

Anónimo disse...

Claro metes assim uns temas quentes a abrir a jornada de trabalho aqui no margoso e depois queres comentários a estes posts que exigem, para além de tudo, reflexão.....

A malta com este calor quer é emoção......

bjs

Unknown disse...

Pois é, Catarina, foi má política. Mas eu tenho culpa que o debate sobre o estado da Nação tenha calhado justim no dia Mundial do Orgasmo???? Fala a sério!

Anónimo disse...

ta fládu "tráfico de droga" e NUNCA, NUNCA, NUNCA "tráfego de droga" ... kel li e um erro de palmatória!!
saudações

Unknown disse...

Tens toda a razão, caro Anónimo. Já foi corrigido. Foi a emoção do Dia Mundial do Orgasmo... Gostei, aliás, da forma «orgásmica» como me chamou atenção! hehe OBRIGADO, OBRIGADO, OBRIGADO!

Anónimo disse...

Esta é da pesada.
Dá que pensar, e digo mais, mesmo que o povo esteja descontente e que haja aquela dor que realmente dói, ninguém faz nada. Não estamos para chatices. Muitos de nós contentam-se com alguns trocados e palavras chiques mal pronunciadas.
Mas não se preocupem... "Cabo Verde está no bom caminho. Cabo Verde nunca esteve melhor."

Unknown disse...

Pois é Neu. Volto a dizer, gostava de ter tido mais reacções a este texto, mas pronto. O timing não terá sido o melhor...

Álvaro Ludgero Andrade disse...

Li tarde o teu texto. Estava de viagem por Chicago à caça do Obama, mas ele preferiu ir ver as loiras alemães. Obrigado por este texto. Enquanto tivermos Joões como tu em Cabo Verde, há esperança.

Mantenhas

Anónimo disse...

Porra Jon, bo divia ter subiód JS y JMN n'uvid sobre bo stadu da nasaun. Muite realistiku y un kritika k'txeu suke e bagóse.

Um bon cefé kta dá pa pensá!

Guy Ramos

Unknown disse...

Alvaro e Guy, obrigado por me mostrarem que não ando a pregar aos peixes, como Santo António...

Edy disse...

João,
há um erro de análise do deputado no artigo d´a semana(talvez seja pela pressa em apresentar o artigo,que está bem escrito,antes do debate):ele diz que temos tido desenvolvimento económico e que é preciso conciliar este desenvolvimento economico com coesão e justiça social.O erro da análise é precisamente este ponto;é um redundância falar em conciliar desenvolvimento económico com a coesão social porque àquela pressupõe esta;existe Desenvolvimento Económico num país quando se consegue conciliar o Crescimento Economico com a Coesão Social...o que se passa em CV é que temos Crescimento Economico sem coesão e justiça social,logo,não temos ainda Desenvolvimento Económico!

Unknown disse...

Tem piada, Edy, eu tinha precisamente a ideia contrária. O tal desenvolvimento económico trás sempre um acentuar das desigualdades sociais. Pelo menos é isso que a história recente nos tem mostrado...

-ha.z disse...

Que texto inspirado!
De uma lucidez, argumentação empolgante, adoro ler (já que me falta talento para escrevê-los) textos com linha de raciocínio clara e este está fabuloso!
Toda essa situação contraditória é um vivência da nossa civilização atual, precisamos pregar sementes de solidariedade ou o individualismo nos levará a situações cada vez mais insólitas (se bem que... será que dá pra piorar?).
E o que você está fazendo aqui no Margoso é fantástico!
Beijos

Álvaro Ludgero Andrade disse...

Muito certo o comentário do Edy. Infelizmente, os interesses políticos e económicos dos podersosos, seja numa potência mundial ou em Cabo Verde ou Guiné-Bissau, retiraram ao ao capitalismo o melhor que ele tem: é o único sistema económico que pode (ou supostamente deve) promover uma "melhor" igualdade social, precisamente através do crescimento económico. Infelizmente, nos últimos anos, os poderosos têm coartado a coesão social, preferindo embolsar o crescimento económico. Abraçao a todos.

Unknown disse...

Eh Thaiz, olha que assim fico até sem jeito! Vem sempre, adoro a tua visita aqui no Margoso...

Alvaro, precisamente. Entre o discurso e a(s) realidade(s) vai uma enooooorme distância. E não me estou a referir especificamente ao caso cabo-verdiano, mas agora de uma forma mais global. Abraço

Edy disse...

Boas João,
então também tu estavas enganado..é precisamente como eu disse:há Crescimento Económico mas não há o Desenvolvimento Economico.O Desenvolvimento pressupõe o crescimento harmonioso,a coesão e a justiça social,uma maior redistribuição,o crescimento para todos.Enquanto o crescimento económico,apesar de ser do país,na prática ela se reflecte só para alguns,o crescimento do país so beneficia alguns...

Anónimo disse...

Infelizmente tud o que bo ta dze e´ verdade... Ma e´que tem falta de gente moda bo pa dze tudo verdade de um maneira tao directa, sem mtos rodeios e meias palavras, pa espia se coisas te tma outr rumo.....alias, e se tiver mais gent ta protesta, sera que mm assim algo ta muda?