Crónica Desaforada

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Uma entrevista esclarecedora

1. Nada me move, a título pessoal, contra Manuel Veiga, titular da pasta da Cultura do Governo de Cabo Verde desde 2004. Antes pelo contrário, sempre que nos temos encontrado em várias situações, sempre foi educado, simpático e nunca transpareceu da sua parte qualquer inimizade pela minha pessoa ou alguma atitude que me pudesse ter feito embirrar com o homem por alguma razão especial;

2. Já fui seu anfitrião duas vezes, na primeira das quais foi assinado um protocolo entre o Ministério da Cultura e a Associação Mindelact, a segunda no encerramento do festival Mindelact do ano passado, onde o ministro, tal como já aconteceu em várias outras situações, teceu rasgados elogios à obra que esta associação cultural vem desenvolvendo em prol das artes cénicas no país;

3. Por me interessar especificamente e de forma empenhada por assuntos relacionados com aplicação das políticas públicas para a área da cultura aceitei ainda o amável convite que me foi endereçado pelo seu ministério para participar no Fórum da Economia da Cultura em Outubro passado e nele participei de forma activa, empenhada e construtiva, como dei conta nesta crónica;

4. Finalmente, procuro em todas as críticas que faço, evitar uma postura destrutiva, azeda ou demasiado tempestuosa, procurando, pelo contrário, escrever de forma fundamentada as análises que neste espaço foram sendo feitas sobre política cultural, em geral, e sobre a actuação deste ministro, em particular;

5.  Dito isto devo dizer que achei a grande entrevista que o Ministro Manuel Veiga concedeu ao jornal A Nação bastante esclarecedora e a principal conclusão que podemos tirar não é novidade para ninguém: estamos perante um linguista de excepção, com o qual podemos não concordar, mas que está, sem qualquer sombra de dúvida, absolutamente preparado para defender as suas ideias nesta área;

6. O seu discurso em defesa da língua cabo-verdiana é claro, directo e não deixa margem para muitas dúvidas. Reflecte, como é óbvio, a obra extraordinária que possui na defesa da língua cabo-verdiana e tira as dúvidas que possa haver em relação a muitos dos equívocos que vem alimentando a sociedade cabo-verdiana nesta questão basilar da oficialização do crioulo;

7. Manuel Veiga mostra, nesta entrevista, e no que ao crioulo diz respeito, não só capacidade de argumentação. Mostra também humildade e jogo de cintura perante a onda de críticas. Fala num processo em construção, quando os críticos insistem na imposição; defende a pluralidade de opinião, quando os críticos falam em autismo propositado; está aberto a propostas e refere que no processo de padronização do alfabeto - que não da língua - todos são livres de usar e defender outros modelos, mas que seria bom que os sustentassem cientificamente, o que até agora não aconteceu;

8. Também concordo com o Manuel Veiga quando ele fala de equívocos referentes ao Alfabeto  cabo-verdiano, sendo certo que se alguns destes equívocos são provocados por pura ignorância ou vontade de provocar confusão deliberada à custa de bairrismos exacerbados, também é verdade que isso acontece porque a proposta agora aprovada não foi socializada, nem sujeita a amplo debate, o que poderia ter evitado o que está acontecer hoje na sociedade cabo-verdiana;

9. Não nos enganemos: os cabo-verdianos estão não só profundamente divididos, como completamente desinformados. Basta ir a qualquer fórum onde este assunto venha à baila para se verificar o nível do debate e a profunda ruptura que está a provocar entre cidadãos de uma mesma Nação, livre e independente já lá vão 35 anos, que pensa, sonha e ama em crioulo mas é incapaz de perceber que não faz sentido não dar um estatuto mais amplo, sistematizado e premente à sua própria língua materna;

10. E aqui chegamos à segunda conclusão da entrevista: Manuel Veiga tem falhado como Ministro da Cultura não apenas na aplicação das políticas da área, mas especificamente nesta que é a sua vertente de eleição: a oficialização da língua cabo-verdiana. Porque se há falta de informação, de debate, de esclarecimento, de procura de consensos mais amplos, de consultas, de conferências, de colóquios, ou seja, de socialização desta questão central, à inèrcia deste ministério o devermos e não fosse assim não estaríamos hoje com o mesmo nível de debate que existia há 15 anos atrás, quando se discutiam os excessos de chapéus e sinais do crioulo escrito e, curiosamente, com o mesmo protagonista;

11. Quando este ministro foi empossado, em 2004, nos discursos da praxe, e com o entusiasmo natural de quem vê um dos maiores linguistas da nossa historiografia assumir um cargo onde poderia, finalmente, colocar em prática tudo o que vinha defendendo nos circuitos académicos e intelectuais, foi dito, alto e bom som que "crioulo vai passar a ser língua oficial em Cabo Verde em 2005" (aqui). Passaram-se quatro anos e quase tudo está por fazer;

12. Sendo certo que esse amplo debate não pode estar confinado ou dependente apenas da vontade de um ministro e do seu gabinete, também não se pode assobiar para o lado e dizer que este não deve ser responsabilizado pela situação que vivemos hoje. Porque muito mais podia e devia ser feito a este nível, e num assunto onde, como se referiu atrás, o ministro domina a seu bel-prazer, com capacidade técnica, teórica e de argumentação acima da média, maiores são as suas responsabilidades políticas;

13. Além da forma pouco elegante como insinua que algumas das críticas feitas ao seu ministério surgem motivadas por ambições pessoais ou por falhadas expectativas de apoio instituicional, todos os outros assuntos abordados na entrevista confirmam a segunda conclusão: a política cultural, que ninguém sabe qual é, continua emersa num lodo estratégico que balança entre os acontecimentos casuísticos, as homenagens pontuais, a economia da cultura que continua por explicar e/ou definir, os planos estratégicos anunciados que nunca viram a luz do dia, a confiança (natural) nos seus mais directos colaboradores e a utilização de termos bombásticos, ontem o diamante do país, hoje o oxigénio da educação. 

Nota final: desejo, com toda a sinceridade, que no próximo dia 22 de Junho, a Cidade Velha de Ribeira Grande de Santiago possa vencer essa imensa batalha e transformar-se em Património da Humanidade para que possamos dar, por esse intermédio, uma importante vitória ao actual ministro da cultura. Porque acima de tudo, continuo acreditar que ele só quer o bem do país e está a fazer o melhor que sabe e pode. E digo isto sem qualquer ponta de sarcasmo ou de ironia.


Mindelo, 19 de Junho de 2009


Imagem: Ta sumara um aiam de Mito





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12 comentários:

Anónimo disse...

Bom lambedura na polpa!

Anónimo disse...

João as dúvidas são muitas realmente. As minhas:
o facto de no Alfabeto ALUPEC escrever-se certas palavras da forma como são lidas (Kafé, por exemplo) não pode provocar confusão para os alunos quando confrontados coma aprendizagem de dois alfabetos ao mesmo tempo?
Outra: Na revisão constitucional defende-se a igualdade entre as duas linguas oficiais. Como garantir isso quando uma existe uma clara desvantagem porque os cabo-verdianos não falam português (na maior das vezes o primeiro contacto acontece na escola)
Realmente precisamos discutir a oficialização com urgência. Antes da revisão constitucional. Acho que era motivo para socialização e debate primeiro e depois referendo popular. Sim, o assunto é muito importante e nós não queremos que os politicos decidam por nòs.

Anónimo disse...

Parem de bater no ceguinho. Não aguento mais ver os bloguistas cabo-verdianos, todos senhores doutores e agentes culturais de primeira ( ssem ironia) a bater no coitado do Ministro da cultura. Será que não há mais nada de errado neste país para denunciar?
P.S. Eu também não gosto dele, mas o assunto já começa a cansar

CEBE disse...

João, não terás por acaso um kink para a entrevista?

Daqui da Alemanha fica difícil acompanhar...

Abraço,
JP

Anónimo disse...

Neste momento o Veiga deve estar a esfregar nos lenções depois da valente mamada (txupada em ALUPEC) do João Branco e do endorsement do Son di Santiago. Mas fazer o quê, c’est la vie.
Publicada por Abraão Vicente

Unknown disse...

Anónimo I, de quem para quem?

Anónimo II, este é um debate com 20 anos de atraso.

Anónimo III, é um assunto que me interessa particularmente, não o ministro, mas tudo o que diga respeito a política cultural. Compreendo que haja quem não se interesse por isso, mas sempre escusa de vir aqui só para dizer que não lhe interessa. Aliás, uns dizem "bater no ceguinho", outros falam em lambeduras de polpa e mamadas, portanto, nem todos leram o texto pelo mesmo diapasão. Felizmente.

JC, também pensei nisso. Espero que a Alfa Comunicações coloque a entrevista online no seu sítio.

Anónimo IV, por acaso não concordo. Aliás, digo precisamente o mesmo que escreve o Abraão nesse post que citas. mas em mais palavras, ou seja, estamos perante um bom linguísta e um mau ministro da cultura.

Já agora, tentem dizer algo construtivo, é difícil? E dêem a cara, é complicado? Estão com medo do quê?

Anónimo disse...

"Como garantir a igualdade entre a língua portuguesa e a língua caboverdiana quando existe uma clara desvantagem porque os cabo-verdianos não falam português (na maior das vezes o primeiro contacto acontece na escola)?"

A resposta é simples: não oficializar a língua caboverdiana! Caboverdianos a falar e escrever (somente?) em português! Equilíbrio garantido!

Não é anónimo? "Deus", dê-me PACIÊNCIA!

Anónimo disse...

Conversa do Ministro da Cultura com o Jornal A Nação na íntegra:

http://www.cultura.gov.cv/index.php?option=com_content&task=view&id=128&Itemid=33

Muitas dúvidas minhas foram esclarecidas. Vale a pena ler.

Unknown disse...

Olha, excelente. Quem quiser ler a entrevista já o pode fazer. Gostava de agradecer, mas não sei com quem estou a falar.

Tina disse...

Não conheço o homem, não li a entrevista (e agora é tarde e estou exaurida para isso), mas entendi precisamente o que diz o JB (que também não conheço): que o homem é um bom linguista, embora discorde dos argumentos dele, mas um mau ministro da cultura. O que fez até então? Distribuiu muitas medalhas, na verdade, mas muitas ainda não entendi porquê... A luta pela classificação da Cidade Velha como património da UNESCO não é só dele, que eu saiba. Eu inteirei-me mais sobre a Cidade Velha lendo o livro de Daniel Pereira. Ainda ontem ouvi-o falar sobre o assunto na RTP África e não ouvi nada que nenhum dos seus colaboradores não dissesse. Esperemos que seja desta que a Cidade Velha obtenha a classificação, para bem de Cabo Verde e porque assim ele poderá afrouxar esta pressão com o Alupec. Tenho pena das crianças que se vão atrapalhar com tanta regra diferente das outras línguas...

Anónimo disse...

A oficialização do criolo tornou-se um designio nacional,aliás a lingua caboverdiana como sendo um dos instrumentos da luta pela libertação merece ser oficializada, os que são contra e os que dizem que são à favor mas... por favor crescem e A...
Caboverdianamente bom fim de semana.

Anónimo disse...

Este homem (Manuel Veiga) vive um grande dilema. Ele sonha criar um pilar civilizacional da cultura nacional, só que o país não precisa desse prestimoso contributo e naturalmente rejeita-o. A verdade é que Cabo Verde já é um país civilizado e também não está à procura de criar uma nova civilização, já assimilou uma nos últimos quatro séculos. O resto é folclore.

B. Pereira