Descartes

8 Comments

Sou o único homem na Terra e talvez não haja nem Terra nem homem.
Talvez um Deus me engane.
Talvez um Deus me tenha condenado ao tempo, essa longa ilusão.

Sonho a Lua e sonho os meus olhos que a vêem.
Sonhei a noite e a manhã do primeiro dia.
Sonhei Cartago e as legiões que devastaram Cartago.
Sonhei Virgílio.
Sonhei a Colina Gólgota e os tormentos de Roma.
Sonhei a geometria.
Sonhei o ponto, a linha, o plano e o volume.
Sonhei o amarelo, o vermelho e o azul.
Sonhei os mapas e os reinos e a morte ao amanhecer.
Sonhei a minha infância enferma.
Sonhei a dor inconcebível.
Sonhei a minha espada.
Sonhei Isabel da Boémia.
Sonhei a dúvida e a certeza.
Sonhei o dia de ontem.


Mas talvez não tenha havido ontem, talvez eu não tenha nascido.
Eu sonho, quem sabe, ter sonhado.

Sinto um pouco de frio, algum temor.
No Danúbio é noite.
Continuarei sonhando Descartes e a fé de seus pais.

Jorge Luis Borges, in ‘La Cifra’ (1981)

Imagem: The Son of Man de Magritte


You may also like

8 comentários:

MM disse...

Pois eu penso, quem sabe, ter pensado
já cá faltava o "Borges" hehehe!
E eis ele chegado
de rompante e pouco levemente, hehehe
gritaram ou sonharam gritar a gente
ontem ou hoje, quiçá
Matrix IV
Desculpa! Ando farta do Borges (por outros carnavais) que não resisti à brincadeira.

Unknown disse...

MM, se os teus carnavais incluem o Borges, oh que abençoada sois! E além disso, a influência tem sido boa, porque a tua pena está inspirada. Quem assim continue, pois, e que o Margoso possa disso ser testemunha... Abr.

Anónimo disse...

Ao longo dos anos, há um pensar (sonhando) que mais parece um sonho sem fim, que se me repete!
Eu existo porque senão não estaria pr'aqui a pensar... e dos biliões de habitantes deste planeta azul... porque será que só estou com este Eu (um Eu aqui destas ilhas perdidads no meio do Atlêantico), e não com n outros eus possíveis por este planeta dentro...
Sem falar, sem nome, sem história, origem ou cor... sigo pensando, sonhando... mas continuo sempre este mesmo Eu. Um simples cabo-verdiano, anónimo ns vida do dia-a-dia do sobreviver constante, por um mundo melhor, a começar por estas ilhas afortunadas...
E acordo do pensar, acordo do sonho, e continuo a perguntar porque não sou a alma/espírito de um outro ser qualquer desta Vida?

Unknown disse...

UAU... isso é que é inspiração!

Margarida disse...

Grande, grande, grande poeta! Não podia deixar de te felicitar pela escolha!

Unknown disse...

MM's que me perdoe, mas concordo mesmo. Um dos maiores. Permanente, na minha vitrina. Abr.

MM disse...

Permanente!! Caramba João. Palavra mais desagradável essa... lembra-me coisas imutáveis.
Nada permanece, nem os seres, nem os estares e muito menos a vida. Tudo transita, tudo é perene...
Tás a ver?? O Borges provoca-me estas crises. Vou deixar de beber café durante uns dias, antes que fique com dores existenciais ou tenha de gritar ao vento: NÃO, NÃO SOU POETA.

Unknown disse...

MM's, todos somos poetas, um pouco, mesmo sem sabermos. Aliás, os teus comentários emanam poesia, mesmo sem querer... portanto! E para um poeta, até o permanente é imutável. Como aquelas dos cabelos das senhoras, não é? São permanentes, mas nem por isso estao sempre a desmanchar-se!