Crónica desaforada

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Basofaria património cultural?


1. Jaques Copeau escreveu: se o actor é um artista, ele é de todos os artistas o que em maior grau sacrifica a sua pessoa ao ministério que exerce. Ele não pode dar nada se não se dá a si mesmo, não em efígie, mas de corpo e alma, e sem intermediário. Tanto sujeito quanto objecto, causa e fim, matéria e instrumento, a sua criação é ele mesmo. É aí que habita o mistério: que um ser humano possa pensar e tratar a si mesmo como matéria de sua arte, agir sobre si mesmo como sobre um instrumento ao qual ele deve identificar-se sem deixar de distinguir-se, agir e ser o que age ao mesmo tempo, homem natural e marioneta...”

2. Muitas vezes existe a ideia de que basta «ter jeito», como se costuma dizer. Somos todos artistas, a arte nasce de geração espontânea, semeada pelo vento. Lembro-me dum episódio que me aconteceu quando Flora Gomes estava a rodar o filme «Nha Fala» no Mindelo: um transeunte parou-me no meio da rua, a perguntar como poderia participar. Disse-lhe que embora não estivesse a trabalhar nas filmagens, que lhe poderia informar onde se deslocar, com quem falar, enfim, as respostas de circunstância. Para logo depois, ele rematar sem hesitação: “é que não sei se sabe, mas eu sou extremamente dotado para a representação.” Nem mais nem menos. Foi directamente e sem hesitações para o extremo do “extremamente dotado”. Um fora de série, portanto.

3. Germano Almeida disse-o muitas vezes: a basofaria nacional é um património que muito tem contribuído para a nossa própria sobrevivência enquanto Nação. Mesmo conhecendo a ironia corrosiva do escritor, esta afirmação, várias vezes e publicamente assumida sem problemas de maior, é dita com tal seriedade, que somos levados a concluir que é mesmo para levar a sério.

4. Podemos até concordar, ou não, e mesmo neste último caso, compreender o que o leva a defender essa tese do valor cultural da basofaria cabo-verdiana. Mas quando se fala de teatro e do trabalho do actor, devemos ter mais cuidado na aceitação sem reservas de atitudes narcisistas.

5. E aqui é que penso ser o cerne da questão. A humildade é um instrumento indispensável para alguém que encara a arte de representar com o mínimo de seriedade. E humildade quer dizer, em termos práticos, que os fazedores do teatro nacional, devem ter consciência da sua grandeza, mas sobretudo da sua pequenez. Que devemos saber medir o caminho e os progressos ou recuos de um percurso teatral sempre com a plena consciência que aquilo que eventualmente tenhamos atingido é uma gota no oceano, ou um grão de areia, se comparado com o que ainda temos para aprender e viver.

6. Humildade quer dizer que cada papel, cada peça, cada cenografia, cada encenação, cada actuação, deve ser encarada como um novo desafio onde se tem que começar tudo de novo. Trazendo no corpo e na alma as marcas das experiências passadas, é certo, mas nunca se deixando cegar por elas. Humildade no trabalho do actor é vencer a terrível luta interior entre o nosso ego e a noção de que é fundamental fazer melhor no trabalho seguinte.

7. Sabe muito bem ouvir os elogios sobre determinada peça ou trabalho teatral. Mas não nos podemos deixar iludir. Ainda temos tudo por fazer. Humildade no trabalho do actor não é sinónimo de menosprezo do que já foi alcançado. Antes pelo contrário, é saber que se o nosso último trabalho foi bom, foi elogiado e teve a qualidade ambicionada, o esforço exigido para que o trabalho seguinte não defraude as expectativas terá que ser ainda maior.

8. Nesta estrada da caminhada do artista / actor, o declive vai aumentando à medida que vamos subindo, o que é o mesmo que dizer que quando mais subimos, mais bem preparados temos que estar para não dar um terrível trambolhão e então, aí sim, “cair na real”, como dizem os brasileiros.

9. Humildade é ainda ter-se a noção da importância da aprendizagem contínua, seja em regime autodidacta, seja aproveitando acções de formação. E nesse aspecto, os amantes do teatro residentes no Mindelo são até bastante privilegiados, porque este tipo de actividade formativa tem tido uma constância e variedade nada desprezível.

10. Mas muitas vezes a sensação que se tem é que o pensamento comum é que o número de vezes que se pisa um palco é inversamente proporcional à necessidade de reciclagem ou ampliação de conhecimentos na arte de representar. Este aparente sentimento de superioridade artística é perigoso e redutor. Devemos, obviamente, sentirmo-nos orgulhosos do nível que o nosso teatro logrou alcançar. Mas nunca devemos esquecer a máxima que nos diz que quanto maior a ascensão maior o tombo.

11. A formação é um pilar fundamental para quem começa a experimentar a arte, qualquer que ela seja, mas é-o ainda mais para quem já apresenta um percurso artístico que deveria andar sempre ligado com a noção crucial de que a aprendizagem contínua é a melhor forma de manter e ampliar tudo o que já foi alcançado.

Mindelo, 24 de Janeiro de 2008


Imagem: pintura «O Narciso», de Caravaggio




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1 comentário:

Anónimo disse...

Concordo com a questao da humildade...foi muito bom ler isso e confirmar mais uma vez que a humildade e´essencial para um artista...eu ate acho que e´importante que todos sejamos humildes...independentemente de sermos ou nao artistas...))
Recentemente aconteceu um intercambio para os E.U.A(devem estar a lembrar-se).Uma amiga minha foi seleccionada para la ir, na area de Artes Cénicas. Uma das coisas que a surpreendeu foi que todos os actores sao super humildes nas escolas de Teatro, de E.U.A. Ela contou-me isso com tal entusiasmo, como se fosse algo do outro mundo!))) E depois ela disse-me que chegou a conclusao de que em Cabo Verde ha muitos actores "bazofos" e que isso e´ pessimo para as Artes Cenicas e nao so....
...nao sei..mas acho que deviamos transmitir mais essa mensagem aos actores,de que ser humilde e´uma grande virtude.))
...mas eu acho que tambem depende muito da personalidade de cada um, da educaçao e outras coisas mais...