Crónica Desaforada

13 Comments


A morte do nosso Cinema Paraíso:

1. No passado Sábado, pelas 12:27 recebi uma chamada no meu telemóvel, que não ouvi. Verifiquei, quando dei conta do sucedido, que tinha uma mensagem na caixa do correio. Liguei o 181, carreguei na tecla número 1 e esperei. Ouvi uma voz conhecida que me dizia que aquele era o momento de passar «por lá». Agora ou nunca.

2. Era a voz de Maria Luísa Marques da Silva, gerente do Éden Park, a sala de espectáculos mais antiga e emblemática de Cabo Verde, cujo edifício tinha sido vandalizado pela enésima vez, desde o triste dia em que as máquinas de cinema se deixaram de fazer ouvir na Praça Nova do Mindelo.

3. Foi um momento de inusitada tristeza, a entrada naquele edifício durante esse início da tarde. Por fora, ao verificar a imponente fachada ao estilo Art-Décor, marca indelével da urbanidade da Praça, não podemos imaginar o que se passa naquelas entranhas, agora devastadas, conspurcadas, assaltadas, estropiadas, desrespeitadas. Janelas e portas quebradas, vidros e sujeira espalhados pelos quatro cantos da mítica sala. A poeira invade os espaços que antes eram pertença das cascas de mancarra nas noites de estreia aos Sábados. As máquinas, quase centenárias, estão no hall da entrada à espera. À Espera de Godot. Chorei.

4. Maria Luísa estava no seu gabinete, ao lado da cabine de projecção, a arrumar papéis e a tentar salvar documentos. «Já não há uma porta que funcione», dizia-me ela, com o peso incomensurável da derrota sobre os ombros, «os bandidos vêm cá praticamente todos os dias.» Convidou-me a ver alguns cartazes de filmes que me interessassem, pois queria oferecer-me uma lembrança do Éden Park, nascido, de parto natural, em 1922.

5. Já tinha escrito sobre o caso Éden Park e volto a dizer: a sala de espectáculos mais antiga e emblemática de Cabo Verde vai mesmo desaparecer. «É o fim de uma era, João Branco», parece-me ouvir a voz embargada da minha heroína do momento, eu que estou invadido pelas imagens e poster’s de dezenas de filmes, pedaços da minha vivência na cidade do Mindelo. Porra! Estou a viver uma réplica do «Cinema Paraíso», quando o velho realizador volta à sua vila natal e vê o estado em que o cinema da sua vida se encontra, a poucos minutos da explosão que o haveria de deitar definitivamente abaixo.

6. Agora pergunta-se: era mesmo inevitável? Que lição nos trás um filme como o «Cinema Paraíso»? Porque será que não aprendemos nada? A Presidente da Câmara de S. Vicente afirma que nada pode fazer por se tratar de «um imóvel privado». Promete que o município estará atento quanto à garantia da manutenção de um cinema no local, nada dizendo sobre o que parece ser a questão central: o património cultural e arquitectónico que o Cine Teatro Éden Park representa para muitas gerações de cabo-verdianos. Avançou, e bem, para o projecto da criação de uma estrutura eventualmente museológica que possa dar tratamento adequado e protecção ao material do Éden Park. E pronto. O Éden Park vai mesmo desaparecer.

7. Não é segredo para ninguém que o Cine-teatro Éden Park esteve, durante muito tempo, seguro por um frágil fio. Um fio que se traduzia na generosa e militante teimosia da sua gerente, Maria Luísa, já aqui referida várias vezes. Não foram poucas as ocasiões em que fui ver um filme ao Éden Park e contavam-se pelos dedos de uma só mão os espectadores, numa sala com mais de 500 cadeiras. A desertificação era visível. O desinteresse geral também. Se há algo que se pode dizer sem medo de errar é que ninguém pode dizer que não foi avisado. O fim agonizante do Éden Park esteve ali, à vista de todos.

8. Ninguém quis saber. Afinal de contas é um património privado e a nossa cultura, tem-se defendido, deve ser «auto-sustentável». Esquece-se de que o Éden Park é património, mas não é só privado. É também popular, geracional e, fundamentalmente, um património de memórias partilhadas. Sabemos que isso não terá muita importância no mundo globalizado e capitalista que vivemos, mas devia ter, e muita, num país como Cabo Verde.

9. Defendi publicamente, num texto escrito há pouco menos de um ano, que o caso do Éden Park deveria ter sido a ocasião perfeita para transformar um problema numa oportunidade. Alguém, com responsabilidades, que comprasse o imóvel. Recorrendo ao crédito, com certeza. Mas não é isso que se faz quando se constrói uma escola, um centro de saúde, um campo de futebol? S. Vicente não tem uma sala de espectáculos com as dimensões que merece e justifica desde há muito tempo. Todos nós sabemos disso. Defendi, pois, a aquisição do imóvel, a sua recuperação, modernização e adaptação arquitectónica no interior e a sua transformação em Teatro Municipal.

10. Localizado onde está, com o passado histórico que tem, poderia ser a menina dos olhos lindos do Mindelo. Por cada volta que déssemos na Praça Nova, no nosso grogue social, e a cada mirada que dedicássemos ao belo edifício amarelado, poderíamos falar, orgulhosamente, «olha ali, a nossa menina. Éla é bnita, n’é dvera?». E seguíamos, sorrindo, orgulhosos e satisfeitos, para mais uma volta.

11. Marquemos pois um encontro de nostálgicos saudosistas para quando as máquinas entrarem em acção para deitar a casa abaixo, ali bem em frente ao Centro Nacional de Artesanato. E depois, que se lixe, não é? Não temos nada a ver com isso. O que veio da terra para a terra há-de voltar e muito possivelmente não haverá nem fumo nem mandód da nossa passagem pelo mundo dos vivos.


P.S. Na foto, pode-se ver uma luz. Quase que uma luz ao fundo do túnel. Não é. Foi apenas uma das portas de entrada utilizadas pelos larápios que diariamente fazem das entranhas do Eden Park local para as mais diversas sandices.

Mindelo, 14 de Janeiro de 2008


Imagem: fotografia de Neu Lopes






You may also like

13 comentários:

Kamia disse...

Foi com um nó na garganta que li esta crónica desaforada. Numa dessas coincidências da vida, ainda hoje citava o Cinema Paraíso numa conversa desencadeada pelo inusitado anúncio dos vencedores do Globo de Ouro. E os cinemas fechados de Cabo Verde também veio à baila.
Desde que foi anunciado o fecho do Éden Park eu sempre pensei para com os meus botões que aquilo era uma questão de tempo até alguem pegar naquilo e voltar a dar vida aos projectores. O mimo com que sempre ouvi falar do Éden Park fez-me pensar assim.
Mas ao que parece afinal há gente tão cruel que não satisfeita de ver aquilo a ganhar poeira ainda trepudia em cima, quebra, suja e conspurca...
Espero sinceramente que não deitem abaixo o Éden Park e que alguem com sensibilidade e bom senso salve o edifício e permita que ele continue a servir à cultura.

Unknown disse...

Kaima

Pois é. Ainda hoje estive outra vez com a Dona Maria Luisa, que está inconsolável. O Eden Park JÁ FOI VENDIDO e vai mesmo abaixo. Pelo que sei, está previsto para aquele espaço qualquer coisa como um centro comercial.

Eu, nem sei o que dizer mais...

Abraço

Anónimo disse...

...é mâs um prova que Cabo Verde é mesmo um P.D.M. ( nada à ver k paìs de desenvolvimento medio,um ta tcha cada um dà se interpretação de PDM)...Deita-se abaixo um Cinema e constroi-se um centro comercial...é progresso, apenas um grôn d'areia na Deserto de progresso,apenas um detalhe ( e que detalhe!) de Cultura de nôs Terra...ou de nôs terra de Cultura,e "ninguém" diz nada?

Anónimo disse...

É simplesmente um episódio lamentável, e eu que sou uma viciada em cinema sinto triste em saber que o meu país não tem sequer uma sala de cinema. O Eden Parque vai deixar mtas saudades...um centro comercial??? Pelo amor de Deus!
Quando li o artigo lembrei-me da peça "Mancarra" que foi gravada ali, replicando as mais caricatas situações que só quem ia ao Eden Parque sabe.

Acho k esta situação foi puxada um bocado pela pirataria cometida pelos video clubes e tenho fé que com a entrada de CV para a OMC isto venha a mudar, porque existe algo chamada direito de autor que as pessoas simplesmente ignoram.

Paulino Dias disse...

Alo, JB...

Esta cronica mexeu muito comigo, pelas memorias que me traz. Eu, menino ainda de Sintadez a desembarcar ali no Porto Grande, a velha malinha de madeira embaixo do braco, a escada escorregadia do ferry-boat Porto Novo, o enjoo da viagem, e so queria mesmo era conhecer esse tal de cinema de que o Gilson tinha-me falado.

Quando ali entrei pela primeira vez, a sensacao eh de ter entrado no mundo. Eh, finalmente saira do fundo dos vales da outra ilha e entrava no mundo. Eden Park era sim senhor o mundo ali ah minha frente.

Os tostoes eram raros para um estudante das ilhas, JB. E ir ao cinema era um luxo a que eu so por raras vezes podia oferecer-me. Mas dia de Eden Park era um verdadeiro acontecimento, quase que nao me importava qual o filme, quem eram os actores, se tinha porrada ou nao..

Eden Park nao poderia desaparecer da Praca Nova e do nosso imaginario, JB. Isso eh uma tremenda injustica. Deixa-nos - e as nossas memorias - orfaos de momentos unicos que ali vivemos enquanto depositarios de uma ambicao maior, a de entrar no mundo.

E depois - merda!!!! (desculpe o palavrao no teu blog) -, veem-me dizer que se gasta 200 e tal mil contos em iluminacoes de ruas e foguetes de fim de ano...!

Nao sei qual o destino que se vai dar ao Eden Park. Mas sugiro que neste dia, vistamos todos de preto para lhe saudar no luto. Nao precisa manifestacao (estou quase a dizer que nao dao em nada). Apenas em jeito de despedida, para que nao morra a memoria.

Um abraco entristecido, JB.

Paulino

Anónimo disse...

É lamentável que tal situação se verifique numa Ilha que afirma ser a ilha mais cultural de todas às Ilhas Cabo Verde, sem menosprezar, é claro às outras Ilhas, mas é profundamente triste, vergonhoso que tenhamos de assistir ao encerramento (“demolição”) do Eden Park .
Fazendo aqui um parêntese, gostaria de dar os meus parabéns ao João Branco pela excelente iniciativa deste blog, há muito tempo, que Mindelo precisava de uma voz assim, que fizesse ouvir, inquieta-se, questionasse, às figuras “políticas” da nossa Ilha. Parabéns pela iniciativa e espero que continue por muito tempo.
Após ter lido a crónica “A morte do nosso Cinema Paraíso ”, desencadeie um místico de recordações nostálgicas dos tempos em que religiosamente ia ao Eden Park, foram bons tempos! Agora vem-me com essa que o Eden Park vai ser destruído!?!? Se avançarem com esta decisão, então, o nosso país não está a progredir, como afirma os nossos governantes.
O Eden Park é um símbolo máximo da cultura de São Vicente, anos de histórias, de realizações, encontros e reencontros, recordações, enfim …

Que os deuses da arte protegem o Eden park

saudações à todos!

Daka

Anónimo disse...

De facto é uma pena a destruição do Eden Park.
O que perdemos: A sensação de sentar numa sala de cinema, os comentários durante e depois do filme, o ecran gigante, o som espectacular, o namorisco no meio da escuridão, o ruído das pipocas, a surpresa semanal de ver o cartaz com a estreia, a fila enorme e o mercado negro dos bilhetes, os convites e convivência dos amigos... perdemos CULTURA

Só resta os grupos de teatro encenarem uma peça teatral sobre a história do Eden Park.

Será que a arquitectura do Centro Comercial vai ficar adequado com os outros edificios ou vai ser uma torre?

Unknown disse...

Eu não sei nada do que vai lá ser feito. Só sei o que vi e o que ouvi. Uma tristeza. Mas quem comprou aquele edificio não foi para o manter como está. Tenho muitas dúvidas mesmo.

Vamos ver. Um abraço a todos.

P.S. Katy: a peça de teatro em homenagem ao Eden Park já foi feita e por acaso foi encenada por mim. Foi filmada e passou várias vezes na televisão. Chama-se «Mancarra». Parecia que se estava adivinhar, não é?

Anónimo disse...

Parabéns JB pelo post, muito bom!
Sabes, é o capitalismo desenfreado: "quem dá mais fica", não interessa o saudosismo, se o Eden Park é património ou não, ou se é bom ou mau essa negociata enfim o que interessa é o lucro meu caro - infelizmente! Lembro-me dos meus sábados no Eden Park enfim... Por outro lado, quando se escolhe o modelo neo-liberal dá nisso, ou não? Não estou propondo o comunismo nem coisa parecida, mas o mundo e esse capitalismo desenfreado está a caminhar para um colápso total, o fosso entre ricos e pobres é cada vez maior. Está questão do EP tem de ser vista de muitas prismas até no que acabei de referir: o modelo vigente, neo-liberal que a nossa terra e nossa gente "escolheu"(?), enfim é dificil falar disso , pois tem-se tornado tabu , se falares contra esse capitalismo te colam ao Fidel Castro, ao comunismo e a ditadura etc e tal como faz o "M.I" Casemiro de Pina. Que fazer JB? Mas para mim o blog e os comments é um sinal que há pessoas que protestam.

Unknown disse...

Casemiro! Obrigado pelo comentário e pela visita ao meu (nosso) café. Mesmo que as razoes - esta crónica - não seja muito alegre.

Abraço do Norte

Anónimo disse...

Caro JB,
não sou Casemiro não. Sou um anónimo mindelense... Se eu fosse Casemiro não falaria da opção neo-liberal de um modo tão crítico. Eu disse que se eu falar mal do modelo neo-liberal, talvés o Casemiro de Pina me colaria ao Fidel Castro, à ditadura etc., etc. como ele faz nas suas crónicas. Fica aqui a correção para que se reponha a verdade. É bom que assim seja senão pode gerar confusão.
Mais uma vez parabens pelo blog!

Unknown disse...

Ops, a Cesar o que é de Cesar. Peço desculpa pelo equivoco... Coisas que acontecem!

Abraço

Anónimo disse...

A falta de atitude por parte da câmara de S. Vicente para a preservação do Eden Parque é um total absurdo!!! Mesmo o governo, através do Ministério da cultura deveria fazer alguma coisa!
O meu pai (Abílio Duarte), um Homem que tinha muita sensibilidade por questões relativas a cultura e que foi deputado por SV, muito provavelmente teria feito alguma coisa...