Declaração Cafeana

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Sempre defendi que uma das funções das artes em geral, e do teatro em particular, é convidar à reflexão, num mundo onde cada vez se tem menos tempo para se pensar no que está acontecendo à nossa volta. Ontem vi um desses espectáculos que nos faz pensar. A companhia brasileira do Rio de Janeiro, Pedras Teatro, na peça Mangiare apresenta o tema da comida como prato principal. O público é convidado a se sentar em três grandes mesas com capacidade total de 70 pessoas. De entrada uma salada oriental é preparada e servida ao público por uma mãe e duas filhas com os seus conflitos e intimidades. O prato principal é feito por divertidas máscaras balinesas que sonham com a fortuna ao preparar um nhoque de inhame. Histórias e segredos culinários são confidenciados ao público por personagens que se sentam à mesa e o tema da compulsão é abordado com música, tragédia e humor. No final as sobremesas são oferecidas numa brincadeira de tentação e desejo. A música ao vivo que alimenta todo o espectáculo contribui para uma autêntica farra gastronómica. Pormenor importante, o público come as receitas que vão sendo "preparadas" pelas três actrizes, tudo acompanhado de um fresco e leve vinho branco. E que boa que é a comida!

Mas isso é secundário, embora não pareça. A sensação que se sai do espectáculo - muito original - é a noção do muito que perdemos todos os dias pelo facto de não nos permitirmos o tempo e a condição de comer à volta de uma mesa com as pessoas de quem mais gostamos. Mesmo na maioria das casas de família (quando as há), as pessoas comem à frente da televisão ou nunca tem horários coincidentes de emprego e escola que lhes permite comer juntas. Se comem na mesa já não conversam umas com as outras ou porque uma espécie de guerra fria já se instalou no lar ou simplesmente porque não há tempo para isso. A festa e a confraternização da refeição é revisitada uma vez por ano, por altura do Natal, e já é uma sorte. Já ninguém se senta para saborear um bom prato de comida, um bom vinho e um bom doce acompanhado, com tempo e disponibilidade, muito menos se tiver na sua própria casa. Não há tempo a perder, não é?

Meia culpa, meia culpa. Esta peça foi uma lição do que já sabia mas que de quando em quando parece que também eu esqueço: que a refeição é, tal como uma peça de teatro, um acto carregado de simbolismo e religiosidade, que uma vez respeitado torna o acto de comer numa acção amorosa e humanista. E toda a parcela de humanidade que podermos acrescentar ao nosso quotidiano é pouca para alimentar este corre-corre que é a nossa vida, e nos lembrarmos que afinal de contas estamos vivos - e bem vivos! - e prontos, se para isso tivermos disponibilidade, para apreciar e degustar as boas coisas da vida. Bom apetite!




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2 comentários:

Unknown disse...

Uma refeição "ritual" com familia e tudo é uma experiência de socialização única...

Unknown disse...

Cada vez mais rara...