Um Café com Caio

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Vou vos falar de um escritor que aprecio particularmente e é pouco conhecido. Chama-se Caio Fernando Abreu, faria este ano 62 anos, se não tivesse falecido em 1996, por causa do vírus da SIDA. Tem uma escrita inquieta, um estilo económico, directo, dramático, pessoal. Escreve sobre a vida, a morte, o sexo mas principalmente da angustiante solidão do ser humano. Há quem sobre ele tenha escrito que estarmos perante «um fotógrafo da fragmentação contemporânea.» Teve uma vida atribulada, cheia de viagens e equívocos, conviveu com artistas e poetas e foi considerado por Lygia Fagundes Telles como o “escritor da paixão”. Destaques de sua obra: O ovo apunhalado (1975), Triângulo das águas (1983), Os dragões não conhecem o paraíso (1988), Onde andará Dulce Veiga? (1990), Ovelhas negras (1995), Estranhos estrangeiros (1996).

É um escritor que vale a pena conhecer. Aprofundar. E na internet, qualquer um pode ler a sua obra integral, completa. Os contos, as cartas, as epifanias, as peças de teatro. Neste sítio aqui, encontram tudo. Vão dar uma espreitadela, que vale a pena.

Entretanto, deixo aqui alguns excertos que aprecio particularmente:

«Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais – por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia – qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido.»

«Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver.»

«Então me vens e me chega e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza, deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque assim que és.»

«Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.»




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1 comentário:

Grace disse...

Adorei os textos e com certeza vou adorar ler os livros. obrigada pela sugestão :)