Crónica Desaforada

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A cidade do pecado

1. Se há algo que caracteriza a cidade do Mindelo e a diferencia de todos os outros lugares é a sua capacidade de dar massagens no próprio ego. Há quem confunda isso com a natural e intrínseca basofaria do mindelense que, sendo por vezes contraproducente, é na maioria dos casos alavanca para uma elevada auto-estima que contribui para que projectos ousados, gente criativa, soluções inesperadas, apareçam quando menos se espera. Com a mesma velocidade com que se fala da vida do vizinho na rua de Lisboa, se inventa alguma ideia louca na qual só o cidadão do Mindelo acredita como viável. Esta postura, que pode ser criticada por muitos de forma justa, tem trazido, em abono da verdade, mais obra do que ruína.

2. Depois de mais cinco séculos do inicio do seu povoamento, vive-se hoje na ilha do Porto Grande numa espécie de limbo, de confusa temporada de contrastes, onde empreendedorismo se confunde com oportunismo, onde a tão falada crise vive lado a lado com um clima de festa permanente, onde quase nada parece ser o que é. Temos meia dúzia de pólos universitários e a maior taxa de desemprego entre a população jovem. No entanto, não se sente, cheira ou prevê qualquer tipo de contestação social, seja nas ruas, nas fábricas, nas casas comerciais, nos bares, nas conversas, nos textos que se escrevem nos blogues, nas letras das músicas, na arte que se cria ou nos segredos que se contam pela surdina. Instalou-se uma paz que perdeu um pouco do seu encanto, porque não inclui nela uma efectiva vontade reivindicativa que sempre foi apanágio da nossa história.

3. Esta cidade é um mistério e alimenta-o até ao tutano. Olhamos para ela, somos seduzidos por ela, violentados quase diariamente por ela e sorrimos com a sua aparente pacatez. Neste tempo de bruma seca, nunca se sabe o que está ao virar da esquina. Nunca se adivinham os resultados das eleições, sejam elas presidenciais, legislativas ou autárquicas. Recebemos com a mesma tranquilidade um corte de luz e a noticia da morte violenta e inesperada de alguém conhecido. Vamos prestar a última homenagem a Cesária Évora e quem passa sem saber o que está acontecendo, tem dúvidas sobre se choramos ou cantamos, se sofremos ou festejamos, se calamos ou gritamos. Esta é a cidade do pecado que, ao mesmo tempo que interrompe o trânsito para que passe uma procissão de homenagem ao santo padroeiro, se despe de forma descarada de preconceitos, de pudores, mostrando sem vergonha partes de corpos que é suposto deixarmos escondidas, enchendo as casas de diversão nocturna onde se vê e se faz o que nem dentro da nossa própria casa admitimos como aceitável que seja visto ou feito.

4. Mindelo vive numa encruzilhada. É com um optimismo latente e quase irresponsável que respondemos às agruras da vida. A forma como homenageamos os nossos confirma essa tendência para orgulhosamente darmos a atenção devida ao nosso umbigo esquecendo que o todo é muito maior que a soma das partes. A forma atabalhoada como queremos ser grandes e melhores que todos os outros poderia trazer imensas mais valias se tivéssemos um pouco de vergonha na cara e soubéssemos o que significa a exigência e o profissionalismo de querer efectivamente ser em vez de apenas querer parecer que somos o que queremos mostrar. A distância entre o sonho e a realidade, entre o querer e o poder, entre a ideia do que somos e aquilo de que efectivamente somos capazes de fazer e construir é, nuns dias enorme, mas noutros tão pequena que não sabemos distinguir a ilusão da realidade que nos mostra que é preciso lutar e suar para se ultrapassar metas e avançar pelo caminho que se escolheu trilhar.

5. Vivemos numa cidade surreal, que segundo foi anunciado com pompa, circunstância e até uma pontinha de orgulho, tem mais cachorros a circular nas ruas do que pessoas com nome registado nos serviços centrais. É a cidade onde queremos dar resposta a uma demanda de barcos cruzeiros com milhares de turistas mas que, ao mesmo tempo, tem restaurantes que obriga um cliente a esperar mais de uma hora por uma omeleta de queijo. Só aqui recebemos com panaceia e vigorosos aplausos a noticia de que o centro histórico da nossa cidade passa a ser pela letra da lei Património Nacional e continuamos a passear pela Praça Nova olhando de soslaio para o cadáver apodrecido da mais emblemática e histórica sala de espectáculos do país, como se já não fosse nada connosco. Gostamos, pois, de esconder o nosso lixo para debaixo do tapete mas não admitimos que ninguém nos venha chamar atenção para o mau cheiro que emana de certos locais, sejam eles lugares, ruas ou pessoas.

6. É uma cidade orgulhosa, esta, que gosta de reivindicar para si própria muitas luzes que contribuem para o apregoado rumo certo que o todo arquipelágico vai dando nota. E se algo não correr como esperávamos temos duas receitas mesmo ali à mão de semear: atribuir a culpa aos outros, muito ofendidos pelo facto de nos terem apontado os erros ou fazer a festa de uma nova genialidade mesmo que seja por cima dos escombros do que acabou por ruir. Não sabemos o rumo, mas gritamos aos sete ventos que tem tudo para dar certo. Não procuramos a excelência, mas com essa mesma facilidade apontamos o dedo a quem tenta fazer. Há hoje um misto de ousadia e de irresponsabilidade, de coragem e de hipocrisia, de capacidade criadora de algo novo e de uma manifesta vontade de deixar as coisas tal como estão.

7. “Qual é o teu emprego?”, pergunta-se. “O meu emprego é o dinheiro que a minha irmã manda todos os meses de Itália”. E com posturas como esta continuamos sem perceber se o que realmente importa são os meninos da ilha de Madeira a tocar batucada e a anunciar alguns direitos humanos consignados pelas carta magna das Nações Unidas ou se a forma cínica e autista como os interesses da cidade (não) são defendidos por quem foi eleito pelo voto popular para os defender acima dos seus interesses pessoais. Esta é uma cidade que viva acima das suas possibilidades, que gasta mais do que tem mas que, ao mesmo tempo, consegue fazer coisas espantosas com quase nada. Esta é uma cidade que te abraça numa rua e te esbofeteia numa praça, que te ama numa esquina e te trai num beco, que te motiva num centro cultural e te coloca para baixo numa conversa de café. É uma cidade adormecida ou, pelo menos, pouco ciente ainda das suas capacidades, que são imensas. No dia em que gastarmos a mesma energia que utilizamos a gritar aos sete ventos que somos o centro do universo, a tentar ser bons e melhores naquilo que realmente sabemos fazer, aí sim, poderemos ter noção de todo o potencial que esta maravilhosa cidade do pecado tem para honrar os cinco séculos de histórica que já leva nos ombros.

Mindelo, 26 de Janeiro de 2012



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7 comentários:

Cris Fontes disse...

Caro João Branco,

apenas uma correcção muito importante: a ilha de SV só começou a ser povoada no século XIX .. em mil oitocentos e qualquer coisa.
Por isso, não tem "cinco séculos de história" mas muitíssimo menos do que isso. ou seja, foi das últimas ilhas de CV a ser povoada.

Cris Fontes

Ivan Santos disse...

"Gostamos, pois, de esconder o nosso lixo para debaixo do tapete mas não admitimos que ninguém nos venha chamar atenção para o mau cheiro que emana de certos locais, sejam eles lugares, ruas ou pessoas."

Creio que está frase reflete o próprio povo caboverdiano, não nos damos bem com criticas e olhares isentos de fora...e temos exemplos recentes disso.

Anónimo disse...

ACHO QUE O MEU NÃO É UM COMENTÁRIO MAS SIM UM CLARO CONCORDAR COM TUDO O QUE LI DESSE DESABAFO DE ALGUEM QUE NASCEU LA PELAS TERRAS LUSAS MAS QUE SE ASSUME HÁ MUITO COMO CVERDIANO SVICENTINO COMO SE FOSSE DE GEMA MAS SINCERO COM RAÍZES E TUDO. É A NOSSA ILHA. SERÁ QUE UM DIA HAVERÁ UMA PRIMAVERA SVICENTINA? NÃO PARA O CAOS MAS PARA O DESPERTAR DOS SV E A EXPRESSÃO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO´, RIMEIRO DA NOSSA PASSIVIDADE E ALIENAÇÃO E DEPOIS PARA OS QUE TÊM O PODER... SV É UMA ILHA SUI GENERIS, MAS O SEU FUTURO COMO POVO, COMO ILHA NUM CABO VERDE CENTRALIZADO ESTÁ NAS NOSSAS MÃOS. OBRIGADO POR NOS DISTINGUIR CULTURALMENTE ATRAVÉS DO TEATRO E DAS CRÓNICAS (?). ABRAÇO DESCONHECIDO

Anónimo disse...

Ah! se você tivesse conhecido a Belle époque do Lombo! Isso é que era Pecado: sexo, porrada e sabura!

Mas, mesmo assim ja ficou um bom mindelense!

Para ser muito bom, tem de fazer mais um pequeno esforço para penetrar esse espirito insondavel e desconcertante mindelense!

dji prâia disse...

"No dia em que gastarmos a mesma energia que utilizamos a gritar aos sete ventos que somos o centro do universo, a tentar ser bons e melhores naquilo que realmente sabemos fazer, aí sim..." deixamos de ser criol

Unknown disse...

Cris Fontes, bem visto. Obrigado pela correcção!

Os outros comentários, subscrevo.

Obrigado pela participação e voltem sempre!

Anónimo disse...

Voltei porque li o badio Djinho cuja familia deve muito a Mindelo mas que continua com um complexinho de inferioridade qualquer em relaçao a esta Cidade do Pecado!

Efectivamente, Mindelo/Soncente, para ofuscar todo o o Cabo Verde, sim ofuscar!!, tem de apostar forte no conceito de Cidade do PEcado.

O Joao Branco escreveu as duas palavras, mas o conceito é meu; Sim, é uma filosofia, é uma postura da vida, esse conceito.

So poderemos desterrar duma vez por todas esses complexadinhos que têm inveja desta Cidade/Ilha, se os meus irmaos mindelenses tiverem a coragem de pegar nesse conceito do pecado e pôr Mindelo la em cima mais alto do que Monte Verde.

Sim, transformar Monte Verde num bordel de luxo; arquitectar a Cidade do Pecado à volta de Monte Cara.

Sim, pegar nesse conceito e transofrmar a Cidade do Pecado numa filosofia do turismo, do sexo, do luxo e do belo.

Ja temos as condiçoes fisicas e naturais, que é a beleza desta ilha e a beleza das nossas crioulas.

Tenhamos pois coragem de transofrmar toda esta Ilha num Eden do prazer com infraestruturas do tipo de LAS Vegas, e dos casinos de Macau, Canes, Copa Cabana e as nossas crioulas todas de tanguinhas servindo e conquistando esses labregos masculinos de todo o mundo.

EM 20 anos, teremos Mindelo nao so a ofuscar Santiago mas a Copa Caban, Las Vegas e todas essas IlhAS PARAISO que existem la pelas bandas do Baamas, Maiami, Barbados, Tenerife, enfim Ilhas e praias que ja visitei e que nao me ensinaram nada, pois desde criança que vejo assim Mindelo.

Se nao tivermos essa coragem, continuaremos a viver como coitadinhos e ainda por cima desprezados por esses Djinhos, cujos pais e irmaos aprenderam o abecedario nesta Ilha que fez Nhô Balta, Nhô Roque, os meus pais, a minha grande familia e Eu!!!!!

Al Binda