Crónica Desaforada

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A Crise


1. Não se fala noutra coisa: crise. Em todo o lado, nos cafés, nos aeroportos, no trabalho, nas grandes conferências internacionais, nas frentes diplomáticas mundiais, nas casas de gente pobre, remediada, classe média, nas escolas, nos hospitais, nas conversas formais e informais, até nos amores e desamores esta é a palavra que nunca está fora das análises presentes nas mais diversas situações, seja a um nível macro ou micro. Nos pequenos, grandes e médios países, no mundo mais ou menos desenvolvido, a Norte e a Sul, por todo o lado, a palavra crise bate-nos à porta, dá-nos umas chapadas na cara, se estamos a dormir acordamos inevitavelmente para uma realidade onde não é permitida a entrada ao optimismo ou à poesia.

2. Está mais do que provado que hoje tudo passa pela economia. Pelo mundo financeiro. Pelos mercados. Hoje, o que mais se ouve, é que é fundamental ouvir o mercado. Falar com o mercado. Não mentir ao mercado porque ele, o mercado, acaba sempre por descobrir a verdade, toda a verdade, nada mais além da verdade. E decidir, por nós, reles mortais, como vai ser gerida a nossa vida nos tempos que se avizinham. O mercado, omnipresente e omnipotente, é o Deus do mundo moderno: está em todo lado, invade todos os lares, tem os seus templos próprios (as bolsas), mas nunca ninguém viu este ser assim, com olhos de ver, que a terra há-de comer e ainda não apareceu nenhum brilhante especialista que conseguisse explicar por a mais b quem é essa tal figura que parece comandar tudo e todos nestes tempos modernos e que, tal como um vendaval, nos arrebenta a porta de casa e os sonhos mais ou menos ousados. Como no caso das outras religiões, o que não faltam são teorias. A maior parte das quais, para entreter.

3. Como entidade misteriosa e superior a tudo e a todos, que decide, que manda e desmanda, que sentencia quem compra o quê e a que preço, que decreta quanto custa cada alma humana vendida em grandes superfícies comerciais, que quando espirra provoca uma gripe mortal no mundo inteiro, o mercado, esse Deus dos tempos modernos, é também o principal responsável pela crise actual. Como nos tem mostrado a história das religiões, é sempre importante a estas entidades superiores darem, de quando em quando, um ar da sua (des)graça, quanto mais não seja para mostrar ao povo quem é que manda, que ninguém pense que é dono do seu destino porque isso foi chão que já deu uvas, agora temos é que ser carneiros nesta longa fila do consumismo e do cada um por si. Morte às utopias. Fogueira aos idealistas. A Inquisição medieval foi substituída por uma espécie de Inquisição económica, controlada por essa entidade financeira suprema.

4. Esta crise económica provoca uma reacção em cadeia e gera muitas outras crises. Crises de identidade, de desemprego, de produtividade, de criatividade. Ninguém tem tempo para nada muito menos para o outro, porque está demasiado ocupado a resolver os problemas, os seus problemas, que a crise nos coloca em cima da mesa. Não nos coloca comida, mas sim facturas. Não nos coloca água e luz, mas sim impostos por pagar. Não nos coloca políticos realmente interessados em resolver os problemas das pessoas, mas sim uma quadrilha de indivíduos desesperados à procura de um tacho que os proteja, a eles em primeiro lugar, dos tempos difíceis que vivemos. A bomba atómica é largada em cima das nossas cabeças, mas os abrigos que nos protegem das mortíferas radiações só servem alguns. Os mais rápidos, os mais espertos, os mais corruptos. Os mais devotos.

5. Desta forma, as pessoas já não tem tempo. Para nada. Estão à procura de emprego, de soluções imediatas que permita um prato de comida para os filhos, roupa e propinas escolares, pagar luz e água, renda de casa, taxas nas urgências médicas. Não interessa, qualquer coisa serve. Um, dois, três empregos. Correspondem a um, dois, três salários. E é tudo tão falacioso já que hoje estes três salários servem para pagar as mesmas coisas que tínhamos que pagar quando tínhamos apenas um emprego e a vida sobrava para as coisas que realmente importam. Ou importavam, porque hoje, urge sobreviver. O Estado, como maior aliado e protector do mercado, exige, pede e pouco dá em troca. Cobra taxas ecológicas em estradas não usadas. Queima lixo. Compra resíduos tóxicos. Aprova projectos imobiliários megalómanos que nos transformam em meros bonecos numa maqueta gigante, um anúncio de chocolate suíço. Uma vida de plástico.

6. Há pois uma crise de criatividade, uma crise de coragem. Que são, precisamente, as armas que melhor podiam ajudar a combater essa outra crise que apenas interessa a alguns poucos e acaba com a vida a quase todos. A criatividade devia ser disciplina obrigatória nos pequenos oásis de resistência que ainda nos dão alguma esperança. E esta devia ter ligação directa à coragem. Coragem para inovar, para combater, para recusar, para protestar, para acreditar que o mundo pode ser algo diferente deste lugar horrível em que se está a transformar. Não nos venham com discursos, campanhas, promessas, megalomanias. Está tudo anestesiado, a olhar para o vazio das suas contas bancárias. Há que abanar esta realidade. O Leo Bassi é que tem razão e a sua apresentação no Mindelo tem um significado que vai muito além da questão da qualidade artística do seu trabalho. Muitos não entenderam e levantaram os ombros com um seco “un ka gostá”. Foi um grito desafinado? Um samba de uma nota só? Algo que não ficou no ouvido como um anúncio de televisão ou o refrão de um hit de zouke love? Pois, mas continua a ser importante que haja quem atire estas pedradas no charco. Por alguma razão uma criatura como o João Vário faz hoje tanta falta a Cabo Verde.

7. Em tempos como estes, precisamos, urgentemente, dos nossos loucos. De gente que grite, que crie, que os artistas e poetas saiam das suas tocas e cumpram a sua missão. Essa sim, divina e vital. Precisamos de homens e mulheres que numa noite de lua cheia saiam para a rua completamente nus e corram a gritar que estão vivos, sem medo de uma noite na prisão, que até pode ter o seu quê de pedagógico. Precisamos de mais banhos sujos na praia dos cachorros, de mais arte, de mais inovação, de mais invasão. Precisamos de sair das casas e dar beijos e abraços nas ruas. Não ter nem vergonha nem medo de amar. Em tempos como estes, precisamos de cacos de vidro, espelhos que nos façam olhar para dentro de nós e de algum qualquer despertar que nos lembre que a diferença, a grande esperança, está sim, dentro de cada um de nós. E nesse centro do centro de cada um, o mercado não entra.


Lisboa, 04 de Outubro de 2010





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6 comentários:

antonio santos disse...

Sublime amigo João!!! eu falta muito pouco para correr nu aos gritos pelas ruas. Ainda ontem me fiz fotografar nu para acompanhar um texto que vou publicar no meu blog esta semana.
Continua, a tua escrita é um alerta para muitas coisas erradas.
Abraço!

Unknown disse...

De estomago vazio costuma dizer-se que a tola não funciona...Eu diria que funciona, só que funciona mal e. amigo, a culpa não é da crise que essa foi inventada pelos mesmos que se esqueceram de cavar os fossos que nos havíam de defender...da crise! E porquê? Porque se alimentam dela, à semelhança das potencias fomentadoras das guerras locais ou regionais equipadas pelos arsenais que é mister colocar para garantir o equilíbrio do terror...A felicidade económico-financeira, infelizmente, rende juros baixos!

Sarabudja disse...

Adoro os teus apelos.
Acho que precisamos de olhar para mais longe, sair das nossas dores, encarar com entusiasmo os desafios, aproveitar para nos reencontrar nesta confusão instalada, sermos capazes de gostar muito de nós todos nús, sem a roupinha da moda, sem o fancy car, degustar o frango assado com o mesmo apetite com que saboreámos uma outra coisa com nome mais sonante e pomposo, e agradecer todas as coisas com nome sonante que já experimentámos.
Beijinho

Elsie Gomes disse...

Já dizia o outro que "em tempos de crise uns choram e outros vendem lenços de papel", e esta crise foi exactamente inventada por esses "vendedores de lenços", por isso porque não limpar as nossas lágrimas na gola da nossa camisa e boicotá-los a venda?

Nelson disse...

Crise, palavra mais popular nos dias que correm. Significa ultimante tudo e nada. Perdeu o sentido original

André HP disse...

Intimamente relacionado com www.anarcofagia.com

Abraço!