Crónica Desaforada

9 Comments




O Espírito Mindelact

1. Há alguns anos, um amigo que nos visitou em Setembro para tentar entender o que era isto do festival mindelact, perguntava-me: «como é que vocês conseguem? Que família é esta e o que é que vos move?». Não consegui ter ali uma resposta, à mão de semear, para lhe oferecer. Mas cada vez mais penso que, embora possa haver algum misterioso denominador comum, o que move cada uma das muitas pessoas que participa, directa ou indirectamente, neste festival internacional de teatro, varia bastante e se alguns estão ali pelo teatro, outros estarão pelo convívio, outros pela partilha, outros pelos ensinamentos, outros pela sensação de se estar a participar na construção de uma grande obra colectiva, outros finalmente, por uma mistura de duas ou outras destas motivações parcelares.

2. Quando uma pessoa como Daniel Monteiro trabalha que nem um louco para o festival mindelact sem ser um grande amante do teatro, a gente questiona-se. O que move o director de produção do maior evento teatral do país? O Daniel é daquelas pessoas capaz de mover o mundo inteiro para encontrar uma cadeira especial que é indispensável para um determinado espectáculo e no entanto, na hora da apresentação do mesmo, raramente se senta para apreciar o resultado final. Para ele, o bom resultado, aquele que realmente interessa, é a satisfação dos responsáveis de cada grupo, que todos tenham as melhores condições possíveis na montagem das suas peças, porque quando mais satisfeitos estes tiverem, maior a probabilidade de termos uma boa apresentação. E com ela, um público satisfeito.

3. Quando os dois mais brilhantes técnicos de iluminação de espectáculos deste país, César Fortes e Anselmo Fortes, que tem o mesmo apelido mas são apenas da mesma família teatral, dão o sangue para garantir que as dezenas de peças do evento tenham as melhores condições técnicas possíveis, nós nos questionamos. O César, com uma capacidade de trabalho notável, investiu o que ganhou montando uma empresa de iluminação em Cabo Verde de grande gabarito, que é hoje parceira fundamental do festival. A empresa Faísca, nasceu deste húmus teatral de S. Vicente e eles não se esquecem disso. Não se esquecem. Nesse sentido, sempre estão presentes. Mais do que isso, eles fazem parte.

4. Quando os membros dos grupos de teatro nacionais gastam o pouco tempo livre que tem, mais a mais em pleno Verão, para ensaiar horas e horas seguidas, quando podiam estar a fazer outras coisas, entre as quais estar com a família, ler, ir à praia, ver televisão, descansar de um duro dia de trabalho, praticar desporto, entre muitas outras actividades possíveis e imaginárias, temos toda a legitimidade de nos questionar: porquê? O que motiva este homens e estas mulheres, a tantas horas de sacrifício? Os aplausos depois de uma hora e pouco de saudável confronto? E se corre mal? O que os faz correr? O que os faz investir tanto de cada um, para participar numa actividade onde não há dinheiro que pague ou valorize esse tremendo esforço? Poucos sabem responder, mas muitos sabem que querem estar. Viver o festival mindelact é um orgulho, dirão muitas destas pessoas. Orgulho porquê, para quê?


5. O que move grandes companhias internacionais para aceitarem participar neste festival em condições hoje consideradas inaceitáveis do ponto de vista da economia da cultura? Sem hotéis de luxo, nem grandes ementas ou cachet’s e muitas vezes sendo os próprios grupos a procurar apoio nos seus países de origem para conseguir o necessário para as passagens? O que faz esta gente aceitar vir, participar, dar do muito que tem, mostrar o seu trabalho, transmitir a sua experiência e conhecimento, apenas pelo prazer de estar, de partilhar, de conhecer outros iguais, de viver a experiência viva e única de participar nesta grande festa? O que os faz correr? Alguém sabe?

6. O que fez com que no passado, assim como hoje ainda acontece, o festival mindelact tenha sido apoiado, acarinhado e incentivado por responsáveis políticos de quadrantes opostos, num pais dominado pela luta fratricida entre dois grandes partidos? Parece uma questão menor, mas não é. Grande parte das maiores actividades culturais, nomeadamente os festivais de música, são organizados por câmaras municipais, e uma passagem por algumas entrevistas de Presidentes de Câmara aos jornais, facilmente induzem uma realidade de um país dividido a meio, entre o verde e o amarelo. O que faz com que este evento teatral, organizado fora destes círculos, tenha conseguido manter, mais do que a sua equidistância, a sua independência total, em relação aos diversos poderes políticos instalados?

7. O que faz com que um número significativo de homens e mulheres, jovens, crianças, pais e mães de família, se ofereçam para trabalhar que nem uns loucos durante onze dias em troca de uma camisola e um crachá, que ostentam de forma altiva e orgulhosa perante os cidadãos da cidade do Mindelo e seus convidados temporários, com a palavra mágica «organização»? O que justifica o suor, as marcas que o corpo guarda, as noites mal dormidas? A fome de teatro explica todo esse esforço? O que justifica o sorriso permanente nos lábios, a vontade de bem receber, a criatividade com que se resolvem os problemas mais bicudos?

8. Estas perguntas são pertinentes, muito pertinentes, nos dias que correm. Estamos na época do individualismo, do salve-se quem puder, do cada um por si e o resto que se lixe. Estamos na época em que se passam mais horas a conversar virtualmente do que olhando nos olhos do outro. Neste tempo em que nos vendemos por dá cá aquela palha, sempre com a desculpa, por vezes demagógica, de que precisamos colocar comida na nossa mesa, mesmo que na verdade o importante realmente seja ir para aquela festa badalada ou adquirir aquela roupa fashion que se viu na vitrina numa das boutiques da cidade. Continuo a achar que o segredo para todas estas questões se encontra no núcleo do que é o festival Mindelact e sempre foi: a própria natureza da arte cénica. O teatro é a arte que coloca o homem perante si próprio, sem desculpas ou omissões. É portanto, a mais humana das artes. E hoje, não tenho dúvidas disso, a mais necessária. E é daí que emana o tal espírito mindelact. 

Mindelo, Setembro de 2010 (foto de Marlon Fortes da peça Void de Companhia Clara Andermatt)




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9 comentários:

Paulino Dias disse...

Belo post, man!

Esta malta toda merece um abraço de todos e o reconhecimento público - como o que acabas de fazer.

Força!, meu caro!, a todos os que dão a sua contribuição para este espectáculo que nos deve encher a todos de orgulho.

Abraço,
Paulino

Ivan Santos disse...

AMOR...continuo acreditando que é o que nos move!!!

Bem Haja ao Mindelact'10

Carla disse...

Muito bonito da tua parte reconhecer este esforço de gente anónima que faz com que esta festa do teatro seja grandiosa. Gostei.
Ah, vi o VOID ontem no CCP. Ma-ra-vi-lho-so!!!!! estou a espera de mais, agora que Nôs da Capital também podemos dizer com orgulho, Temos Mindelact!!!!

Kuskas disse...

Oi JB
Hoje comecei o dia saltando a tampa com um colega meu por tua causa :)

Mas conto-te num email.

Muito bom post. Ainda domingo eu dizia a filha adolescente de uma amiga, que não coisa melhor do que passar horas a conversar com um amigo .... olhando-o nos olhos, não teclando em frente a um PC.

Força e MERDA

João Paulo Brito disse...

É alma, João. É alma...

O teatro devolve-nos a humanidade que insistimos em perder... quando termina o festival, estamos cheios, revigorados,... mas é preciso vive-lo para conhece-lo...

Um grande abraço para todo o pessoal.

Fico a espera da extensão do Sal...

Jota, ausente, mas não por muito tempo...

Margarida disse...

É uma familia... O que vos (nos) move é mesmo esse espírito de irmandade que, o ano passado, nos fez andar, a todos sem excepção, de calças arregaçadas a tirar água do CCM para salvar a noite teatral que se avizinhava.
O Mindelact tem esse sentimento mágico que "apanha" todos os que por lá passam! Beijinhos grandes e sucesso para esta edição!

Adriano Reis (conta.storia@gmail.com) disse...

È agradável saber que o Avelino e Socrates irão estar no maior festival de teatro Africano - MINDELACT.

Envio um abraço a todos os corajasos que lutam para que todos os anos haja o mindelact.

Viva o Mindelact Sempre!

Unknown disse...

FINALMENTE. E se já antes o fizeste, ainda bem. Contente por ver a maturidade de retirar-te do foco do Follow-spot e deixar a luz brilhar sobre os outros, importante deixarse saber que há centenas de jovens que ao longo dos anos fizeram, so seu suor icognito, grande o Mindelact. Hoje de manhã por coincidência, depois de tantos anos) voltei a falar do Mindelact para elogiar a tua capacidade de aglutinar energias. Neste fim semana no Mindelo algume lembrou-se me mim elogiosamente como actor, coisa que já nem eu me lembro:).Contente por ver os comentários do Adriano e do Jota, meus colegas co-fundadores. Ainda me lembro de nós, na barraquinha da rua de Lisboa, a tentarmos vender os primeiros bilhetes precisando explicar as pessoas que não era bilhete de cinema e o que era um "festival de teatro". Para vos que ainda tão envolvidos desejo "muita M..." como é da tradição. Paulo Cabral

CCF disse...

Muito bonito tudo, este texto e o próprio festival. E absolutamente de acordo sobre o TEATRO. Infelizmente não pude ir ainda, mas quero muito.
~CC~