Cafés com Mindelact 2010

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Tenho recebido várias mensagens de protesto, algumas mais desaforadas que outras, sobre a não actualização do Café Margoso em pleno festival Mindelact 2010. Tem toda a razão quem assim protesta e, com o pouco tempo que me resta, aqui ficam algumas impressões digitais da presente edição do festival Mindelact 2010.

1. Leo Bassi e as suas utopias, num espectáculo realizado depois dele e da mulher terem sido assaltados nas ruas do Mindelo, algo a que o radar mais conhecido do país achou muita piada. O espectáculo termina com um grito de revolta em plena rua do Mindelo, mas dúvido que alguém tenha pensado um pouco mais no que podia representar esse grito colectivo. A utopia casa bem com este festival, mas cada vez menos com a cidade que o acolhe.

2. Void e Clara Andermatt: um hino à cabo-verdianidade, como já li num jornal. Um momento grande desta edição feito de grandes momentos sobre a(s) vida(s) dos crioulos em terra estrangeira. Já disse e repito, é um trabalho feito com alma, com um espírito que se encontra hoje mais facilmente nos emigrantes do que nos residentes. A poesia do arquipélago torna-se mais premente quando nos falta este chão. 

3. Os Amantes, e a re-escrita de um crioulo que (ainda) não existe. A peça teve tanto de trabalho de mesa e de tradução como de encenação directa com os actores. Ao todo, um ano de trabalho. Um sotão velho a cheirar a mofo e a caca de pombo. Uma necessidade de procurar outros palcos, outras formas, outras dramaturgias. Uma peça que não tem medo. Nem sequer de errar. Ou desagradar. Uma peça que evoca e promove momentos de um silêncio espantado, como há muito não via no teatro em Cabo Verde.

4. Julio Adrião e uma das mais espantosas lições de interpretação de que há memória nos palcos deste festival. Com A Descoberta das Américas somos confrontados, mais uma vez, com a natureza pura da arte cénica. Feita de carne humana. E um espaço vazio. E uma história que comunica e nos faz sentir como parte do todo. Uma lição, esta sim, uma lição que os agentes crioulos deveriam gravar com atenção e urgência.

5. O experimentalismo do Elinga, o grupo angolano de Mena Abrantes, que não pára de surpreender dentro daquilo que é a identidade desta importante companhia de Luanda. Que nos mostra, e ainda bem que vem de onde vem, que ao teatro africano se lhe pode dar o direito de ser contemporâneo sem ter logo que ser tachado de emitação de teatro europeu, como tantas vezes se gosta de dizer por aí.

6. As malas com os figurinos e adereços do grupo espanhol ficaram na Praia, por negligência do próprio Ylanna e o trabalho, energia e vontades acumuladas para desbloquear a situação, por parte de múltiplas entidades foram tantas (incluindo da Cooperação Espanhola, que foi decisiva neste caso), que se perdeu um pouco o prazer de reconhecer a extraordinária capacidade criativa dos seus integrantes. Que chegaram no próprio dia, atrasaram a montagem 45 minutos (algo inédito) e regressaram no dia seguinte, por terem muitos outros compromissos. Estiveram num festival de teatro em Cabo Verde, mas nunca aterraram no Mindelact. 

7. Chuva, sol cascado, chuva, sol cascado. Stress porque peças do Festival Off tem que mudar de lugar. Generosidades, como as do Enano, do Miguel Pinheiro, da Verónica, do pessoal da  Craquinha. É preciso muito atrevimento para fazer um festival como este. Assim como é preciso muito atrevimento para vestir esta camisola, mesmo que para alguns seja apenas mais uma camisola. Degradação? Não sei, pode ser. Mas é da matéria orgânica originária da podridão que as naturezas se renovam.  E por falar em podridão, a má-língua do Mindelo, que não o espirito crítico, faz parte disto, como sempre fez. Já não mói.

8. Um buraco no lugar onde estava uma casa centenária, mesmo ali ao lado do Saudade, onde todos comem e quase todos dormem. Um outro grande buraco, esse provocado não pela acção humana, mas pela natureza, que leva uns bem-aventurados apoiar uma finlandesa fina e branca como cera a realizar uma performance dentro de um vulcão. Gente com coragem, esta. O Mindelact não existe? Deixem-me rir. Quem assim fala é que já sumiu do mapa e é pena. Dar o braço a torcer pode sempre ser uma virtude.

9. A extenção na Praia provocou discussão, bocas, azedumes, apoios, palavras de incentivo, um pouco de tudo. Só por isso já valeu a pena. O mais importante é que está sendo feita graças a duas instituições que pegaram nesta ideia e transformam uma aventura em realidade. Para mim é, também, o Mindelo a dar o exemplo. De que se pode e deve parttilhar. Quem sabe se num próximo festival de Jazz se lembrem de trazer alguma coisa a S. Vicente. O país é múltiplo mas também é uno.

10. Como vai terminar? Em festa, espera-se. Com salas esgotadas, com invasão de crianças com aconteceu no primeiro fim de semana da programação Teatrolândia. Com partilhas, com brindes, com trocas furtivas de quartos de hotel, com teatro de rua, com o António Santos dando-nos mais uma lição de quietude e o António Simão, dos Artistas Unidos, de interpretação. A qualidade é garantida. Aprende-se muito por aqui.

11. Lamento informar os abutres da desgraça que o festival mindelact está vivo e recomenda-se. Que se renova a cada ano. Se ultrapassa. Que erra e vive bem com isso. Que sente de forma decisiva o carinho de uma cidade e de um país. Que tem perfeita consciência que no dia em que deixar de existir, lhe será dado o real valor e se terá consciência do que este evento representa. Como simbolo. Como atitude activa perante o risco. Como espaço de partilha e de afectos. Um enterro digno é coisa garantida, com elogios e palavras de circuntância.

Voltarei, dentro de poucos dias, com mais marcas deste festival. Feito, isso sim e também, de sofrimento, suor, muitas dores, gritos, abraços, beijos, palmadas na cara, reis e imperadores, pés no chão, crianças e velhos, dentro e fora, no centro e nas periferias, de lágrimas, de cerveja, de rumores, de rancores, de água e lama, de cadeiras coloridas e cenários de devastação. Uma festa única. O resto é digestão.



Mindelo, 24 de Setembro de 2010

(Fotografia de Nuno Andrade Ferreira)



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2 comentários:

argumentonio disse...

uma lufa-lufa, pois é?

mas o Teatro agradece e quem o ama também!

abraCénico ;_)))

JPN disse...

parabéns João, pelo trabalho que tu e a tua equipa têm feito aí. abraço JPN