Dôs com César Schofield Cardoso

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Numa altura em que, sem saber porquê, César Schofield Cardoso resolveu mandar uns certos  tipos àquela parte e apagou, até ver, todo o passado do seu Bianda, achei que serei uma boa altura para publicar aqui a conversa que tivemos os dois a propósito de arte e criação.

O César, que gosta de se intitular artista visual, porque é aquele que vê com olhos de ver, explica o que quer isso dizer e como se sente umas das pessoas que mais contesta o estado de coisas do seu país, nomeadamente na área cultural. Já o disse várias vezes: é uma voz que merece ser ouvida.

Não tens a sensação, várias vezes, de estares a pregar no deserto?

César Schofield Cardoso: Frequentemente.

Porquê?

Porque parece que o esforço empreendido para estudar, saber, procurar, tentar perceber o que posso fazer para ser diferente não se traduz em impacto esperado. E isso causa-me internamente muitas vezes uma grande insegurança, como se estivesse a trilhar o caminho errado.

Mas quando fazes as críticas que fazes e da forma que fazes, estás a pensar nesse tal «impacto esperado» ou fazes apenas porque isso é também uma forma de desabafo público?

Mais a segunda opção. Tenho por mim que a única coisa que pode causar impacto é o trabalho. As críticas são mais desabafo. Tento alinhar as críticas à produção. Se criticas, tens de ter exemplos a dar.

Cá está um aspecto que me interessa especialmente, nomeadamente no campo da criação artística. Consideras que os artistas reflectem e pensam sobre as suas próprias obras?

O problema entre nós é o conceito de produção artística: é uma forma de entretenimento ou é uma acção?

E qual é o teu conceito?

O meu é acção.

E a reflexão sobre essa mesma acção, onde fica?

Pois, se tem ideia que combato veementemente e que está de forma abundante no discurso político é a ideia da arte-entertenimento. A arte é uma coisa muito séria para ser tratada como mera diversão-decoração

E pegando nas tuas próprias palavras, pergunto: Cabo Verde leva a sério a sua própria Arte?

Terminantemente, não. Ainda não (re)encontramos a boa ligação entre a Arte e a Sociedade. Talvez ela tenha existido no tempo da Claridade. Talvez ela tenha existido durante a luta de libertação. Hoje, precisamos de novas causas.

Entretanto passaram-se décadas. O que falta para que o pensamento voltado para a arte, a conceptualização dos próprios criadores seja tão importante quanto a criação em si? Não sentes que há um enorme vácuo?

Sinto que já não podemos continuar no impulso. Fazer arte por paixão somente. Precisamos de produção intelectual, de forma integrada, que possa influenciar a produção artística. A meu ver isso passa, primeiro, por ensino e, depois, por crítica.

Mas o que podemos fazer se os próprios artistas não estão disponíveis para essa reflexão? Parece que te é proibido falar do teu próprio campo de concepção criadora, porque se és músico e reflectes sobre a música que se faz hoje, a discussão extravasa logo para questões menores e até pessoais sobre quem é mais importante e quem fez mais em determinadas alturas...

Por isso mesmo defendo uma certa "institucionalização" da arte. Como disse a Ministra da Cultura, temos que diminuir o achismo. O drama do artista cabo-verdiano, é que ele é, na sua maioria, de formação autodidacta, um tipo de formação francamente desvalorizada. Precisamos que validem o nosso conhecimento.

Isso é um pouco assustador. A cultura não se institucionaliza, é contra a sua própria natureza...

Sei que percebeste o que quis dizer. O que é a escola senão uma instituição? Então vamos defender aqui que não é preciso escola para a Arte?

Depende do conceito que estás a dar ao termo «escola». Se for para nos por a pensar todos a mesma coisa a partir de receitas pré-concebidas, não vale a pena...

Aí vem a segunda fase, a crítica. Eu adoro a crítica. Contrariando muita gente, tenho um enorme respeito pelos críticos. Sigo diariamente a crítica do cinema, por exemplo, e mesmo se de vez em quando estou diametralmente contra uma determinada crítica, foi preciso ela ter existido para que eu pudesse ter uma opinião diametralmente oposta. Para mim a crítica é a parte que nos vai tirar do academismo, para nos levar a produzir coisas novas de verdade. A Arte só existe quando há criação.

Porque se critica tão pouco em Cabo Verde nos palcos, mas se critica muito nos bastidores?

Fundamentalmente, porque a crítica tem que ser estruturada, e isso dá muito trabalho. E feita por gente preparada, por historiadores da arte, por sociólogos, por antropólogos. Em Cabo Verde a crítica vai continuar a ser feita nos bastidores porque não temos a certeza das coisas que tiramos da boca. Mas isso não é fazer crítica. Vamos lá alinhar as definições. Isso é mal-dizer. Aqui estamos a falar de crítica-análise.

Pelo teu discurso e a tua postura, parece-me claro que concordas com a junção dos Ministérios da Cultura ao Ensino Superior, porque muito do que dizes junta a questão e a problemática da formação à da criação artística...

Sou a favor que esses campos de actuação (Ensino e Cultura) sejam vistas juntas mas não defendo uma única orgânica para os dois. Aliás, falando da entrevista da Ministra, ficou-me claro que a Cultura vai continuar na berlinda.

Isso é bom ou mau? Estar na berlinda costuma ser visto como algo positivo.

Bem, o que quis dizer é que a Cultura vai continuar sem uma orientação forte.

À deriva?

A deriva é um movimento. Nem isso, atracada no porto. A nossa cultura ainda está à espera de rotas. Do tal "Planeamento Estratégico da Cultura".

Se te convidassem para integrares os quadros do Ministério da Cultura e tentar aplicar muito do que defendes, aceitarias?

Não teria o perfil para nenhuma posição no Ministério da Cultura. Profissionalmente desenvolvo Sistemas de Informação e por aí já vou tendo uma carreira de que me orgulho. Na Cultura posiciono-me como um produtor e, confesso, gostaria que a minha profissão fosse essa. Até porque o Ministério da Cultura não faz a Cultura, facilita-a.

Num dos teus últimos textos intitulas-te de «artista visual». O que quer isso dizer?

É o artista que tem olhos. Literalmente.

Olhos para...

Ver

Ver o quê e como?

A maioria das pessoas olha, o artista visual vê. Treina-se para isso.

E como é feito o teu treino? É diário? É mais introspectivo, mais reflexivo? Como decorre o teu processo de criação, seja com a câmara fotográfica, seja com o vídeo?

Inicialmente, era muito físico. Sempre gostei imenso de composição. Mas hoje, com um pouco mais de experiência, é muito introspectivo. Passo metade do ano a fotografar e a filmar dentro da cabeça e a outra metade a fazê-lo com a câmara. Leio muito e um pouco de tudo. E a cada leitura acabo por criar imagens na cabeça.

Não corres o risco de, por tanto reflectires, as pessoas dizerem todas que és um grande chato, e seres reconhecido antes por isso do que pela tua própria obra artística?

Sim, corro esse risco. Mas a minha prática tem confirmado esse caminho. Importante é fazer. A produção é a única confirmação dessa conversa fiada.

Qual é a tua relação, enquanto aquele que vê no seu acto de criação, com o facto de seres um menino de Soncent e amares profundamente a Praia, que é a tua base inspiradora? Por vezes, não tens sentimentos contraditórios, quanto mais não seja por causa do nosso DNA, um pouco bairrista por natureza?

Mindelo é um lugar que nasceu já sendo cidade. É cosmopolita por natureza e isso reflecte-se sem dúvida na minha maneira de ver as coisas. Praia, aliás, Santiago representa uma tremenda experiência telúrica. Aqui a Cultura significa Terra-Natureza-Homem. Considero-me muito mais rico depois de ter permitido essas coisas coabitarem dentro de mim. Sou menos conservador que o badiu e mais telúrico que o sanpadjudu de Mindelo.



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4 comentários:

Ivan Santos disse...

Bali... :-)

Adriano Reis (conta.storia@gmail.com) disse...

Força ai irmão!

Cabeças duras é uma questão de continuar a bater até que atina.

Má nada!

Anónimo disse...

Caros,
Os Homens da Cultura sempre sofreram e o sofrimento faz parte da sua inspiração.O Schofield não é uma excepção.
Como disse e muito bem o Schofield, os políticos não fazem a cultura mas sim, facilitam-a.
E disse ainda mais, que são precisas novas motivações, depois da Claridade e luta de libertação, para que o artista tenha também novas inspirações.
As incertezas, as frustrações e as desilusões são uma constante e motores de combustão da arte em toda a sua diversidade.
Schofield terá muitos mais momentos de frustração na sua vida artística, mas saberá, com inspiração e elevação próprias dum artista, utilizar esses momentos e criar novas coisas belas, como tem feito.
Quem conhece a vida e obra e viu o documentário do Camilo Castelo Branco, na RTP África, ontem (dia 17/07/10), entenderá o que eu quero dizer.
Homem da Cultura(a todos os níveis) que não sofre, não produz em devida qualidade !!!
A criação do mundo não me tocou porque não fiz parte dela. Perfeita e bela demais para me inspirar o que quer que fosse.
O mundo ruiu e a obra nasceu e esse artista que sonhei ser um dia, renasceu das cinzas e foi feliz.
Que tamanha contradição e porventura mau gosto (mas gostei do que disse).
Tentar atirar as culpas aos políticos, também faz parte desse sofrimento e frustração.

Bem haja Schofield.

Olavo disse...

...a discussão sobre a promoção da cultura em geral e da criação artística em particular é essencial. O que dela resultar será determinante para depassarmos um certo momento histórico de absoluta letargia nesse campo. No entanto, não acredito que possamos fazer essa discussão sem entrar no assunto tabu dos paradigmas que sutentam os sucessivos modelos de desenvolvimento (político, económico, etc.) pelos quais optamos nos últimos 35 anos. A ausência de verdadeiras políticas nesse sector e essa visão de "cultura-diversão" de que fala o Schofield é absolutamente coerente com esses modelos. Aliás, quando o João Branco falava numa crónica para um jornal da "necessidade" do Ministério da Cultura ser uma espécie de "Ministério da Dor" eu pensava com meus botões "mas, a dor é uma sensação humana" não das coisas e, é isso que essas opções nos tranformaram: em coisas. Os caboverdianos são coisas. Somos contribuites, hipertensos, eleitores, consumidores, alcoólicos...a promoção e criação da cultura é feito por homens e para homens!