Crónica Desaforada

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A Nação ainda é o que era?

1. Há alguns dias fui convidado para assistir a um ensaio geral da peça «Contos em Viagem – Cabo Verde», uma etapa para a apresentação da mesma num festival no Rio de Janeiro. Esta peça é uma produção que a companhia de Lisboa Teatro Meridional estreou na cidade do Mindelo, no festival mindelact, há dois anos, numa daquelas noites memoráveis que nos fazem agradecer a todos os deuses e espíritos conspiradores o facto de a vida nos ter guiado por este caminho sinuoso das artes cénicas, o campo onde mais se mergulha nas entranhas da humanidade, de uma forma absolutamente arrebatadora e implacável.

2. A referida peça, construída a partir de textos de mais de uma dezena e meia de autores cabo-verdianos, é um hino à tão propalada cabo-verdianidade, mas a inquietação que no final me assaltou estava relacionada com uma dúvida premente e que justifica esta introdução teatral: ainda existe esta poesia no quotidiano do arquipélago cabo-verdiano? Ainda se pode cantar, chorar, contar histórias nas soleiras das portas, olhar para o céu e pedir a Deus que abençoe o nosso espectáculo ou a nossa vida, com uma confiança inusitada de que além há-de sempre existir algo de muito superior que vai proteger o destino deste abençoado país?

3. Estava com uma amiga cabo-verdiana que nunca tinha assistido a esta peça e não queria desperdiçar esta oportunidade única e no final comentamos este facto. Ela, que havia terminado o curso há alguns anos e se tinha fixado em Lisboa com um emprego fixo e estável, contou-me que durante as últimas férias que passara em Cabo Verde deixara na sua casa, em Portugal, as malas feitas para regressar definitivamente ao país. «Estava em dúvida. Pelo sim pelo não, deixei tudo pronto, não se desse o caso de querer ficar em Cabo Verde.» Depois de uma pausa suspirada e algo triste rematou: «como vês, não fiquei. Também me custa verificar que o meu país está a perder a sua poesia. Não me senti bem e resolvi regressar a Lisboa. E olha que não me arrependo.»

4. Que reflexão podemos retirar deste episódio? Pessoalmente, não vejo nesta atitude nenhuma patada ingrata, antes um sintoma de muitas coisas que ao longo dos últimos meses tenho procurado chamar atenção nestas crónicas e no blogue Café Margoso. Na minha área de referência, que é a arte e a cultura, o panorama continua a ser um imenso deserto de iniciativa e ideias novas, um desaproveitar de gente com vontade de fazer acontecer, um deixa andar que não se resolve com medidas avulsas, muito menos com fóruns hipócritas e enganadores que todos sabem à partida não resolver coisíssima nenhuma.

5. Uma das situações com que me confrontei várias vezes, a este propósito, foi a constatação do que chamei então, «o olhar de fora». Este reflecte o olhar de alguém que, não vivendo a realidade e o dia-a-dia de Cabo Verde, escreve sobre ele, ainda sob o domínio de um enganador fascínio resultante de uma visita pré-determinada para agradar, com itinerário certo e argumento definido. Geralmente, estamos na presença de alguém que aterra em Cabo Verde com uma imagem que mistura uma ideia mais ou menos romantizada de «África» (como se esta fosse uma entidade só) com cubatas e tubarões à mistura, com aquela certeza irredutível de que se vai cruzar com alguma dessas tragédias «africanas» que misturam fome, miséria, lixo, pobreza extrema e, claro, alguma doença misteriosa.

6. Claro que, partindo desses pressupostos, o visitante chega a Cabo Verde e fica agradavelmente surpreendido: os aeroportos internacionais são modernos e funcionais, as ligações entre estes e os hotéis são hoje feitas por estradas asfaltadas com razoável aspecto, há praças digitais espalhadas pelas principais cidades com dezenas de jovens com computadores portáteis acendendo gratuitamente à Internet e tirando aquela imagem de marca do cinzentismo do tijolo das casas inacabadas que domina mais de dois terços da paisagem das nossas ilhas, até que o balanço de uma visita destas acaba por ser positivo. E é mais ainda se o termo de comparação for a de alguns outros países africanos. Mas é daquelas coisas: justificar o nosso mal com o mal do vizinho é a mesma coisa que tapar o Sol com a peneira. Ou seja, nunca foi solução para nada.

7. Esta perspectiva que tenho agora é diferente de todas essas: é um pouco com a dessa amiga cabo-verdiana que decide que ainda não é hora de regressar. Estou longe há alguns meses, mas acompanho diariamente a realidade com um olhar de quem viveu efectivamente durante mais de 15 anos a realidade arquipelágica, principalmente da cidade do Mindelo, sentindo na pele os seus sabores e dissabores. Tenho a pretensão de saber quando me estão a tentar enganar e quando a realidade vai um pouco além das estatísticas ou de um lugar honroso nalgum ranking definido por instituição internacional.

8. Cabo Verde está numa encruzilhada, isso parece-me claro como a água das praias da Boavista. Sei que é banal e fútil fazer tal afirmação, é como quem descobre a pólvora, mas a verdade é que este parece ser o tempo que vai definir muito do futuro do arquipélago. Não se sabe ainda, nem se entende bem, se este é o país dos anúncios bombásticos de centros internacionais disto ou daquilo, sem os quais o planeta Terra nunca será mais o mesmo, ou o país onde um mosquito ataca uma percentagem assustadora da população, incluindo o chefe do Governo. Foram anunciados na altura planos estratégicos de remoção de resíduos sólidos e líquidos, acordos com os municípios, mas onde estão os planos de aterros sanitários, de estações de resíduos sólidos, em suma, da mudança radical de tratamento do nosso lixo, anunciado com tanta pompa à pouco menos de um ano atrás?

9. Em tempo de campanha eleitoral, preparem-se, certamente veremos sempre os dois lados da mesma moeda: amarelo de um lado, verde do outro. E é em tempos de campanha eleitoral que mais se nota aquele que me parece ser um dos maiores cancros sociais de Cabo Verde, aquele que mais trava e menos contribui para um futuro risonho que é certamente o desejo sincero de todos: a extrema partidarização da sociedade. A guerra aberta que se instala nos dois lados da barricada, que nos anos mais pacatos se resume ao triste espectáculo que nos é ofertado pelas sessões da Assembleia Nacional e ao mundo obsceno e sujo dos comentários nos fóruns da Internet, invade-nos por todo lado nesta época: nos jornais, na televisão, nas ruas, nos táxis, nas conversas de café.

10. As convicções políticas deixam de ser políticas e passam a convicções partidárias. E estas resumem-se, tantas e demasiadas vezes, em saber quais os galos que vão ocupar os muitos poleiros que o Estado vai colocando à disposição dos seus supostos servidores. Portanto, ideias novas, nem pensar. A possibilidade de uma dialéctica construtiva transforma-se aos olhos mais atentos numa utopia absurda. Ficamos confusos, apreensivos, obrigados a escolher o mal menor, ou a encolher os ombros e pura e simplesmente concluirmos que o melhor é nem participar nesta discussão incongruente.

11. Devemos orgulhar-nos do país que temos? Com certeza. Mas isso já não basta. Quem se consegue manter com o nariz fora do lodaçal em que se transformou a disputa política, deve poder dar um murro na mesa, fazer alguma coisa, activamente, agir, falar, de forma livre e descomprometida. Claro que é bom, por exemplo, verificar quanto o nosso teatro evoluiu nestes anos, seja por causa dos grupos de teatro, das acções de formação promovidas, dos festivais internacionais que nos abrem portas e nos dão referências, incluindo aquele que temos no Mindelo. Mas talvez seja mais importante, nesta altura do campeonato, pensarmos que este enorme avanço conquistado está a ser muito mal aproveitado e continuamos a navegar por águas incertas, desnorteadas e sem qualquer tipo de rumo definido. Talvez seja bom, por uma vez, acordar para a realidade real. E quem sabe recuperar a poesia perdida nestas águas agitadas dos tempos modernos.


Mindelo, 29 de Julho de 2010




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4 comentários:

Paulino Dias disse...

Alô JB,

A este propósito, recomendo-te a leitura do (novo) blog do Olavo. Ler principalmente o post "Estamos em festa...". Um deliciosíssimo desabafo.

http://www.luzolav.blogspot.com/

Abraço,
Paulino

Unknown disse...

Acho que a Nação, em vez de ser o que era, deveria ter sido o que devia: não é tarde para arrepiar caminho!

Anónimo disse...

É curioso, meu caro João, que quando se fala em dar um murro contra os políticos, pensa-se, escreve-se e comenta-se apenas contra o Governo e esquece-se do que acontece no outro lado. Por exemplo,a vergonha que é a CMSV, em Assomada onde o Presidente ficou sozinho porque correu com todos os vereadores e acaba de quebrar um carro e de ser agredido por um empresário a quem ele deve e muito, sem contar o histórico dos 90. Se ainda temos de fazer campanha contra a dengue é porque depois da cólera, o país ficou como ficou, se temos de construir estradas, aeroportos, portos e muitos cabos no chão para luz e energia, é porque sem isso não há investimentos. Porque o Santiago Golf Resort, oferecido de bandeja a amigos do MpD, nunca arrancou? Porque nesse lugar só havia a estrada que dá acesso à Cidade Velha. Acho que devemos deixar de ser hipócritas: ou criticamos de facto os políticos ou defendemos claramente as nossas posições partidárias.

Abraço

Carlos Silva

David disse...

Reponsabilidades...: Fazer as contas...quem esteve mais no poder em CV desde a independência... Bem os Brasileiros ainda culpam os Pts. por tudo o que acontece por lá.
FAÇAM AS CONTAS E DESCUBRAM .