Dôs com António Tavares

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Bem recentemente esteve nas bocas do mundo ao dirigir uma ambiciosa e ousada ópera no mais importante centro cultural de Lisboa. O que fica depois de uma gigantesca criação como essa? Foi o que tentamos saber nesta curta conversa a dois.

Qual foi a sensação para este rapaz de S. Vicente ter montado uma ópera num espaço como o Centro Cultural de Belém?

Tó Tavares: (risos) Antes de mais foi uma espécie de ocupação, no sentido de ocupar mesmo, porque no fundo houve ali essa ideia da ópera enquanto ocupação, nós éramos uns forasteiros que chegamos ali e ocupamos um espaço, o espaço ópera, que à priori não era o nosso, pois esta tem uma identidade sobretudo europeia.

O próprio espaço do grande auditório do Centro Cultural de Belém também é um lugar onde raramente há lugar para eventos ligados a algum país africano…

Há um jogo, uma dualidade. Um espelho. O que tu és, não és. O que o espelho te dá, é que parece que é. No fundo, foi esse jogo que fizemos. E graças às condições que tivemos as pessoas acabaram por aderir.

Estávamos perante uma ópera cabo-verdiana, pode-se dizer isso?

Será que existe uma ópera cabo-verdiana? Será que há possibilidade de se fazer uma ópera cabo-verdiana? Todas estas questões estavam inerentes à própria temática crítica da nossa própria forma de ver a construção dos nossos trabalhos. No fundo, o que nós dizemos é que se há um world music Norte – Sul, também há um world music Sul – Norte.

Como é que se pode ter a ambição de ter uma ópera cabo-verdiana se, por exemplo, não temos escolas de música que ensine as nossas crianças a tocar instrumentos sinfónicos, se ainda vivemos num país onde só se houve música clássica na rádio quando morre alguém importante? Não há aqui uma questão básica que nos diz que não podemos ter a ambição de ter uma ópera crioula ou música erudita cabo-verdiana se não nos preocuparmos com a educação de base?

Há dois vectores ligados a essa questão. Sendo uma obra de autor, isso trás com ela uma identificação clara. Um romance de um autor português, cabo-verdiano ou chinês, é sempre um romance. Assim, desde que tu te apropries da estrutura, a universalidade é tida em conta e acaba por se manifestar. No caso da música, Cabo Verde tem um pouco uma vivência estranha com ela. É a nossa maior riqueza, mas ainda passa de uma forma demasiado artesanal. A música não é escrita, é incorporada de uma forma quase física. As pessoas ouvem, repetem, tocam. Isso não quer dizer que não haja reflexão. A ópera, por exemplo, é tida como a obra de arte total, que inclui todas as outras, música, teatro, artes plásticas. O que fizemos aqui foi uma apropriação da ideia de ópera como uma possibilidade de demonstrar que, sendo uma obra de arte total, nós estamos em condições, também, de a concretizar. Yes we can.

Não te entristece que não possas mostrar essa obra em Cabo Verde?

Cabo Verde precisa urgentemente de um espírito de agenciamento. Uma agência que faça com que as obras, os trabalhadores da cultura, os criadores estejam em contacto com o mundo. Agenciar para que as obras possam estar nos sítios certos, nos momentos certos. Isto é fundamental. É fundamental que a política pública cabo-verdiana faço por isto. Cabo Verde tem que encontrar o seu próprio modelo para fazer circular as coisas.

Há uma questão relacionada com a circulação, mas há uma questão provavelmente mais básica ainda que está relacionada com a educação artística. Desta vivência que tens do trabalho desenvolvido em vários países da Europa, que tipo de modelo é que achas que poderia ser implementado no país, no que diz respeito à componente da educação artística?

Isso tem muito a ver com a nossa história cultural que por sua vez está ligada de forma umbilical a Portugal. O nosso maior problema é que nós não acreditamos nos cientistas. Ainda desconfiamos disso. A mais-valia de Cabo Verde é o Homem cabo-verdiano, mas quando há essa desconfiança acaba-se por aniquilar uma série de outras coisas. Estamos agora a chegar a um primeiro estado, ao estado da tese, substanciado com o aparecimento da universidade em Cabo Verde. Podemos colocar tudo em causa, mas com sustentabilidade científica. Temos que deixar de ser um Estado dos buldognhes, onde todos falam e acham que têm sempre opinião. Não há respeito por quem estuda e investiga. Quando sou recebido na Dinamarca, sinto que levam em conta o teu percurso e tu sentes isso. És ouvido e tu sabes que há espaço. Nos EUA, por outro lado, o que me fascinou foi a acção directa, chegar fazer. Aqui ainda estamos muito agarrados à folha de 25 linhas.

Vivemos ainda no universo da sinopse?

Exactamente.

Quando foi a última vez que estiveste em Cabo Verde, em criação?

Em 2002 e 2003 estive nas ilhas para reflectir sobre uma outra maneira de estar. Questionava-me se Cabo Verde permitiria alguma vez que se pense a transnacionalidade, onde por exemplo se poderia estar por aí durante uns três meses, criar uma peça e depois sair com esse trabalho por três meses e depois regressar, para mais formação, criação, debates, aulas abertas, essa tal ideia da acção directa, onde se poderia entender outras dimensões de Cabo Verde. Acabei por entender que se nós largarmos alguns complexos que nós temos, poderíamos ir muito mais longe. Não se compreende que não haja um centro cultural cabo-verdiano em Lisboa, por exemplo, que é a cidade no mundo onde há mais cabo-verdianos!

Quando falas em complexos estás a referir-te a que aspectos, em particular? Como cabo-verdiano que tem um olhar de fora, como avalias essas pedras que se encontram no caminho e impedem essa tal circulação de obras e conhecimento artístico? Porque é que ainda não conseguimos entrar nesse círculo de criação que podia ser tão benéfico para o país?

Lembro-me de ter conversado com o Tchalé onde ele dizia: tu podes sair para o mundo, expor nos maiores museus do mundo, mas chegas aqui e parece que não aconteceu nada. É aquele raciocínio que nos diz que aquele que mora ao nosso lado não pensa noutra coisa a não ser no baile do próximo fim-de-semana ou em qual cueca que tem que usar nesse dia. Cabo Verde não é um espaço isolado. Cabo Verde está aqui em Lisboa, está em Luanda, está em todo o lado. Nós, os artistas, que há muito tempo perdemos as fronteiras, facilmente nos apercebemos dessas ligações, encontramos gente nos lugares mais variados que estão a tentar dizer as mesmas coisas que nós. O problema é que ainda continuamos a achar que estes gajos, os artistas, são uma espécie de bandeira. Há baile, mandamos colocar a bandeira para assinalar que vai haver baile. Acaba o baile, tira a bandeira e joga para um canto. Ninguém nos leva muito a sério. O pensamento geral é que não fazemos nada de especial, qualquer um pode fazer. Isso é muito perturbador.

Os artistas ainda são vistos como parasitas?

Olha, quando vamos ao dentista, esperamos que a pessoa que lá está com aquelas maquinetas todas a mexer-nos na boca, seja de facto, um dentista preparado. Tu vais, sais com a cara inchada e pagas sem perguntar nada. Em relação a nós, as pessoas vão ver o trabalho e fica tudo a dar-te conselhos, a dizer-te que devias ter feito assim e não assado, porque «fica mais giro, se for o Manuel em cima da Maria e não o contrário». Somos uma troupe de opinadores.

E como lutar contra isso?

Por exemplo, a música da Cesária Évora tem a dimensão que tem e a repercussão no mundo que tem, mas é estranho chegar em S. Vicente e não ter um espaço Cesária. O museu da Cesária está na casa da Cesária. Chegas na sala dela e estão lá os grammys e os prémios todos. Mas aquilo é também um património daquela cidade, daquele país. Ninguém pensa o quanto o país poderia ganhar se as coisas fossem feitas de uma outra forma. Com merchandising, com divulgação. Até para as pessoas saberem que o que a Cesária canta começou com um senhor chamado B’Leza, que nos anos 30 começou a compor músicas com esta sublime universalidade. O Manoel de Oliveira, quando soube que eu era de Cabo Verde, veio logo dizer-me que o fado tinha vindo de Cabo Verde e ficou em Lisboa! Está mais que comprovado que o único património que existe no arquipélago é o Homem. Qual o país que se pode gabar disso mesmo? A palavra pobre devia ser retirada do nosso dicionário. Essa e a palavra morabeza.

Morabeza, porquê?

Porque é um bluff. Nós somos kool. Qual kool! Nós temos é uma forma de estar peculiar, somos humildades – ou éramos, até uma determinada altura – porque passamos por grandes dificuldades. O nosso slogan devia ser Pequeno País, Grandes Ideias.




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4 comentários:

Adriano Reis (conta.storia@gmail.com) disse...

Morabeza, porquê?


Porque é um bluff. Nós somos kool. Qual kool! Nós temos é uma forma de estar peculiar, somos humildades – ou éramos, até uma determinada altura – porque passamos por grandes dificuldades. O nosso slogan devia ser Pequeno País, Grandes Ideias.

PRECISO DE FAZER MAIS ALGUM COMENTÁRIO? DITO ESTA DITO! MÁ NADA!

TONY, QUANDO ENCONTRAR-TE VOU DAR-TE UMA GANDA ABRAÇO!

Deina disse...

Realmente não é preciso fazer mais nenhum comentário, está TUDO DITO e BEM DITO, Tony
Um grande abraço!

Adriano Reis (conta.storia@gmail.com) disse...

Deina, tens razão! se era uma treta dos politicos, ou o Zé Cunha a exprimir o que vem na alma, de certeza que que os comentários era muito!

Como é um grande valor Caboverdeano o orgulho "besta" do Crioulo fica em cima (tipo do Caboverdeano, não valorizar o que é nosso. Porra!)

Saudações Culturais!

Neu Lopes disse...

Gostaria imenso de investir nessa de agenciamento.
Até o final do curso decidirei. Oxalá haja gente que queira fazer uma boa parceria.