Crónica Desaforada

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Viagens interiores

1. O mundo ficou mais pequeno mas nem por isso mais fascinante. Continua a ser impressionante que haja habitantes da cidade do Mindelo, por exemplo, que em décadas nunca tenham, sequer, atravessado o mar de canal para uma curta visita à ilha vizinha de Santo Antão, até porque quando se passa das paisagens castanhas, secas e lunares de S. Vicente para o mundo verdejante e arrebatador das montanhas de S. Antão, é como se tivéssemos passado de um pais para o outro, de um mundo para o outro. E a história repete-se sempre se a comparação for feita entre outras ilhas vizinhas. Cabo Verde tem a enorme vantagem competitiva de ser um pais com, pelo menos, nove países dentro dele.

2. Tudo isto para vos falar o quanto penso ser importante nos darmos essa possibilidade de viajar, sair das nossas quatro paredes habituais, das rotinas diárias que nos consomem e adormecem, nas mais variadas formas. Podemos viajar para fora, claro, mas com a crise há sempre muito boa gente que só de colocar essa hipótese fica com a conta bancária a tremer. Mas há o tão célebre viajar para fora cá dentro, não só entre as diversas ilhas do arquipélago cabo-verdiano, mas também dentro da própria ilha, cada uma delas sempre com lugares fantásticos por descobrir. Há mundos incríveis aí mesmo à mão de semear, sabiam? Ambientes fantásticos e poderosos à distância de uma passeata de trinta minutos ou mais. Há sim, acreditem, universos novos por descobrir mesmo aqui ao lado.

3. Sempre tive este gosto pela aventura, e não havendo hipóteses de viajar, a gente inventava. Assim fui e conheci, várias vezes, ainda criança, diversos planetas, em naves espaciais instaladas debaixo da cama. A minha mãe sempre entendeu isso e me deixava voar, uma das muitas razões porque sempre a considerarei um exemplo de educadora, com um apurado sentido pedagógico, muito à frente do seu tempo. Por vezes, com estranhas consequências. Por exemplo, em plena cidade do Porto, invadia, com um grupo restrito, quem sabe se inspirado pelas aventuras dos cinco de Enid Blyton – que naquela época se devorava como primeiras leituras – casas e jardins abandonados, explorando tudo o que para nós era digno explorar.

4. Nas casas mais antigas, invadíamos caves e subsolos à procura de tesouros improváveis, sótãos poeirentos em busca de algum objecto mágico, quintais mal amanhados que se transformavam automaticamente em densas florestas com as mais temíveis criaturas, buracos e fendas que eram transfiguradas em grutas com esqueletos de gatos, galinheiros fedorentos adoptados em centrais secretas de comunicação, árvores e ramos usados como locais privilegiados de observação de movimentações inimigas e, claro, os telhados das casas contíguas, que eram as nossas estradas predilectas, porque plenas de perigos, bandidos, assaltos, estranhas actividades, umas reais, outras saídas das nossas cabeças plenas de fantasia (a maioria, claro).

5. Um episódio ficou célebre na família, quando algum vizinho mais ou menos afastado, entretido num prédio longínquo com uns binóculos de grande precisão, se apercebeu de uma estranha circulação nos telhados, cinco indivíduos, não se poderia dizer se de alta ou baixa estatura, se machos se fêmeas, se muito ou pouco armados, se haveria ou não alguns outros em zonas fora da visibilidade daquele cicerone improvável, mas somados os prós e os contras, os possíveis e os inverosímeis, seguindo o ditado popular que nos faz ser como S. Tomé e crer naquilo que a nossa vista pensa estar a observar em determinado momento, a conclusão só podia ser uma: estava a decorrer, naquele pacato bairro, naquele preciso instante, um assalto às residências daquele quarteirão.

6. Só assim se explicaria que, estando nós, cinco ou seis crianças ainda em plena puberdade, entretidos com as nossas mais que inocentes brincadeiras, entre quintais nossos e telhados vizinhos, tivesse aparecido, num repente e tal qual filme de acção tipo Rambo, um número indeterminado de policias de intervenção armados até aos dentes, surgidos por artes de mágica dos quatro cantos norte sul este oeste, aparecimento esse acompanhado de um sonoro e implacável “mãos ao ar!”. Sorte nossa que a madrinha estava por ali a tratar das galinhas e jurou de pés juntos ao comandante da operação que aqueles meninos eram todos de boas famílias e em troca de uma promessa de entrega de relatório o mais completo possível aos respectivos encarregados de educação a partir do qual surgiriam as inevitáveis e merecidas punições, lá se deu o episódio por encerrado, o que não impediu que este acontecido passasse a fazer parte da galeria dos acontecimentos mais inusitados da família.

7. Viajar, pois. Imaginem o que crianças com a imaginação no auge da sua potencialidade não poderia fazer com os cantos e recantos das nossas ilhas, com as montanhas, os vulcões, os areais, as dunas, os pequenos oásis, os caminhos de cabra, os faróis abandonados, as carcaças de navios à beira-mar, os cutelos, as cascatas, as grutas, as estradas secundárias, terciárias ou esquecidas, as praias desertas, as plantações de bananas, os resort’s ainda em construção, as ruínas de edifícios podres, com ou sem importância patrimonial, as casas de tambor, as avenidas alcatroadas sem uso, os armazéns abandonados, os quintais discretos, os terraços das cidades, os tanques de água secos, os cantos e recantos das ilhas maravilhosas. O que não faltam são alternativas para dar asas e sair por aí sem norte.

8. Portanto, por muito que a vida esteja difícil para todos, há sempre formas de viajar e dessa forma dar uma sapatada num quotidiano adormecido pela repetição de gestos, horários e compromissos de trabalho ou familiares. Infelizmente, neste momento sem cinema, foi retirado aos cabo-verdianos essa possibilidade de viajar através das aventuras das maiores estrelas de cinema e nunca é demais lembrar como o funcionamento do cine-teatro Éden Park, como tem sido escrito e referenciado até à exaustão, promoveu não só a formação pessoal e social de várias gerações, como foi válvula de escape e motor de um veículo imparável que nos permitia viajar, voar, explorar novos mundos dantes nunca vistos por qualquer alma viva ou morta.

9. Também por isso nunca me esqueço das primeiras semanas que passei no Mindelo, onde tive um dos maiores apaixonados pelos cantos e recantos da ilha de S. Vicente, o músico Vasco Martins. Com ele, ou por causa dele, era praticamente arrastado para grandes passeios por entre montanhas e caminhos quase secretos, descobri lugares onde se vê a ilha de ponta a ponta, praias secretas de difícil acesso, num encontro inesquecível com a alma da ilha, com a alma que também me fugia sabe-se lá para onde. Deixar de ter essa capacidade para viajar, dentro do nosso país, da nossa ilha ou dentro de nós mesmos é também uma forma de matar por dentro aquilo que faz do ser humano um milagre da natureza. Hoje, mais do que nunca, é fundamental olhar em volta, voar e relembrar da nossa pequenez.


Crónica publicada no jornal A Nação, de 21/11/2010




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3 comentários:

Unknown disse...

Tinhamos entre sete e doze anos, muito tempo livre, pouco ou nenhum juízo e uma fértil imaginação alimentada pelos filmes épicos do pós-guerra...E tínhamos o morro do fortim, enfeitado num dédalo de trincheiras que os primeiros expedicionários do exercito portugues ali haviam diligentemente escavado, nunca ninguém soube para quê...
Os dois capitães escolhíam o seus subordinados e companheiros, não para um jogo de bola-de-meia na terra vermelha mas...para a guerra!
Terminada a escolha, corríamos morro arriba de armas a bagagens e grante gritaria ocupando as trincheiras mais comvenientes e menos inundadas de excrenentos humanos que era coisa por ali abundante, em quantidades e variedade de aromas mais ou menos inconvenientes ao nosso estatuto de soldados de elite...E lançavamos umas pedradas uns aos outros, com e sem fisgas, com menos precisão do que desejávamos...Quando alguém era "ferido" vinha o "enfermeiro" que punha mercuro-cromo, mais nos dedos do que na ferida, passava uma ligadura e devolvia o magala ao combate. O pior era quando a ferida era séria...A guerra era suspensa e havia reunião do estado-maior para "inventar" a melhor desculpa para o sucedido...De qualquer forma porém, quando se começava a noite a adivinhar, fazía-se um armistício tácito, a malta comia as sadinhas de lata e o pão duro que tinha levado como mantinmentos, sacudiam-se as camisas, limpavam-se os jolhos com um pouco de cuspo e lá íamos jantar e dormir sonhando com façanhas de soldados invencíveis que durante anos povoaram enorme espaço no nosso imaginário. Mau grado, poucos, muito poucos de nós, fez carreira militar...

Fateja disse...

Fateja um local isolado que fica atrás de Monte Cara … vale a pena conhecer

argumentonio disse...

é ir, é ir, é descobrir(-se) e encontrar recantos do eu que só aparecem "em circunstância"!

e se nos fortalece...

;_)