Declaração Cafeana

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No meu primeiro dia em Cabo Verde, em Outubro de 1992, aterrei no antigo aeroporto de S. Pedro, fui para casa do Vasco Martins e logo depois para uma outra casa, de amigos do compositor muindelense. Não se via quase ninguém nas ruas da cidade, era um Sábado da tarde. Quando chegamos na tal casa, estava tudo grudado na televisão, a ver um derby entre os dois clubes rivais de Lisboa. Sofrendo, roendo as unhas, gritando golo ou insultando o árbitro por ter marcado uma falta ao contrário do que deveria ser. Tudo em crioulo, claro.

Alguns anos depois, uma grande festa tomou conta da cidade do Mindelo. A selecção de Cabo Verde de futebol tinha acabado de vencer a Taça Amílcar Cabral, uma importante competição entre países desta região de África. O povo saiu à rua. Quem visse concluiria que a selecção cabo-verdiana equipava de verde e tinha o leão como símbolo maior, porque era essa a cor e a figura dominante na grande festa popular. Ah! É que no mesmo dia, no mesmíssimo dia, o Sporting Clube de Portugal quebrava um jejum de 19 anos e sagrava-se campeão nacional, de Portugal. A festa foi muito mais verde que azul. A verdade é que houve muitos mais rugidos de leão do que mordidas de tubarão (os seleccionados crioulos tem a alcunha de tubarões azuis).

Vem isto a propósito desta crónica de Odair Rodrigues sobre os festejos apoteóticos dos (muitos) cabo-verdianos adeptos do clube da Luz no passado fim de semana, que se sagrou campeão português. Questionava ele onde estaria a lógica de tal alegria? Se fosse o caso, festejariam uma qualificação de Cabo Verde para a Copa das Nações da mesma forma?, pergunta o articulista. Nada a ver, diria eu. Há que se olhar isto como um fenómeno sociológico abrangente sem complexos de qualquer espécie, até porque esta é uma realidade mais ou menos comum nos chamados PALOP's. 

O Porto, Sporting ou Benfica não são, apenas, clubes portugueses disputando um campeonato de futebol em Portugal. Fazem parte de uma herança cultural, tal como a língua portuguesa. E por alguma razão as discussões públicas mais acesas entre cabo-verdianos são, precisamente, sobre futebol e, na maioria dos casos, sobre futebol português. Será isso produto do colonialismo? Talvez. Mas hoje em dia, a forma como se sofre pelos clubes citados em Cabo Verde está de tal forma impregnada que uma análise séria do fenómeno terá que ir bem além dessa constatação histórica que é, diga-se de passagem, bastante redutora.




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9 comentários:

Unknown disse...

É pena que esteja ao nivel dos pés
o fenómeno que aglutina os palops,
embora alguns usem a cabeça, também.. E também é pena que, afinal, esse futebol tenha, ao mais alto nivel, tão poucos portugueses!

Anónimo disse...

Concordo com Odair. Ele está a fazer uma espécie de auto-crítica dizendo "Acredito que as perspectivas não são boas para o deporto caboverdeano. Parece-me que a comunicação social continuará a ignorar ou menosprezar os nossos feitos e atletas".
Portanto creio que Odair está a tentar chamar atenção para um fenómeno de alienação que é também impulsionado pela própria comunicação social caboverdeana: ao mesmo que enaltece feitos de atletas de outros paises ignoram por completo os feitos dos nossos desportistas.
E já agora se pudesses nos tirar desse saco etiquetado de PALOPS ... seria bom. Não é porque se fazem coisas estúpidas em Angolas e Guinés que temos de seguir ...
Africanos sim !!! SEMPRE. PALOPs soa mais a Repúblicas de Bananas, orfãos (coitaditos) da colonização que precisam que o Grande Benfica lhes dê um alegria...

Amílcar Tavares disse...

Acho que o Odair Rodrigues devia viajar e ler mais.

O fenómeno é o mesmo nas países africanos anglófonos e francófonos. Os clubes da Premiership são adorados, assim como os da Ligue 1.

Mas no caso deles, o futebol interno mobiliza milhões e quando a selecção joga, o país pára. Quem acompanha A CAN, Copa de África das Nações, sabe disso.

Muitas vezes a resposta costuma ser o mais óbvio. Em boa verdade, os cabo-verdianos não ligam ao seu futebol. Basta reparar na notícia que vinha n'A Semana sobre a convocatória para o próximo jogo da nossa Selecção, que é contra Pontugal: foi copiada no jornal luso A Bola!

Claramente, se a nossa comunicação -- que devia formar e informar os seus leitores -- não se empenhar nisso, daqui a um ano, daqui a dez anos, os factos relatados neste artigo, naturalmente, suceder-se-ão.

Unknown disse...

Pss, por isso utilizei a expressão «chamados PALOP's», que também abomino. De resto, estamos de acordo sobre este assunto.

argumentonio disse...

eis como se consegue complicar a abordagem de um tema notório!

como habitual, a vitória do Benfica no campeonato português de futebol é um fenómeno nacional, da diáspora e da lusofonia!!

é de facto raro, pois noutros países, modalidades e clubes, a celebração é confinada a um grupo restrito de adeptos de uma certa região - e com o Benfica é sempre o que se vê!!!

por causa de uma situação festiva e contagiante, questiona-se o conceito de PALOP - Países de língua oficial portuguesa;

atenção: Portugal é um PALOP na mesmíssima circunstância que os demais Países irmãos de língua, o que acresce à identidade de cada um, nada retirando

questiona-se o desporto de Cabo Verde - mas quando Cabo Verde, no desporto ou em qualquer actividade, designada e felizmente em termos culturais, disputa ou alcança níveis relevantes, o orgulho irmão é exactamente igual, tal como sucede com o Brasil e outros Países em diversas ocasiões, nomeadamente em competições desportivas

e questiona-se a informação/formação: mas independentemente da evolução necessária e reivindicável na elevação da qualidade da comunicação social - aliás, tema comum a muitos Países, PALOP incluídos mas um pouco ou mesmo muito por todo o mundo - as celebrações do Benfica sempre foram globais pela sua característica principal: a adesão popular

nada mais, embora isso seja, naturalmente, muito e bom

é festa

;_)))

Ivan Santos disse...

Texto kre poi alguem entre espada e paredi: ou bu ta torse pa Benfika,Sporting ou Porto ou n'tom pa Seleson Nasional!!!??

Kada um ta torse pa equipe ki e ta identifika mas i ke se "paixão", ninguem ka e obrigadu a torse pa ses seleson nasional...

N'konxi varius portugueses, ki ta prefiri torse pa ses time (SLB,SCP,FCP,etc etc) do ki pa ses Seleson Nasional...

Assim komu n'konxi varius brasilerus ki ka sta nem aí pa Seleson...!!!

Alguem ta torse futebol não pa bandera, mas sim ma "paixão" di odja kel time ta djuga...pa "rivalidadi" ki ta gera a volta...etc etc...

abrasus e bejus

Anónimo disse...

Se vocês vissem a festa que eu vi na ilha do Maio, depois do BENFICA se ter sagrado campeão iam certamente passar-se e iam perceber que há heranças que nao vale a pena nem faz sentido contestar.

Há coisas bem mais superiores que o colonizado ou o colonizador.

Marco disse...

Bem, eu cá sou benfiquista de Portugal e nem imaginam o orgulho que sinto por saber que existem tantos benfiquistas em Cabo Verde e que comemoram como aqui em Lisboa. 100 mil no centro de Lisboa, estão a ver a festa! Acho que é bonito ver o futebol a aproximar as pessoas, em vez de as fazer andar à porrada.

Anónimo disse...

JB. Ouvi a tua crónica esta manhã na RCV, como habitualmente o faço às sextas. Confesso que, por surpresa minha, quando ouvi o "vosso hino" - do FCP a tocar quase que não me apeteceu continuar a ouvir a tua bela crónica. Mas valeu no final quando disseste que a musica de fundo era apena uma provocaçãozinha, heheheheh. Obrigada por mais este cafezinho margoso desta sexta-feira.

Bnefiquista, Ouvinte e leitora assídua das tuas crónicas na rcv e no blog.