Crónica Desaforada

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Vamos lá

1. Vamos lá, olha para o teclado e avança. Escreve, tens que escrever, mais do que isso não esperam de ti as pessoas, algumas haverá que param nesta página de jornal para ler o que tens para dizer, se é que tens alguma coisa para dizer, que pretensão a tua! Vais escrever sobre quê, agora que acabaram as eleições presidenciais? Vais escrever sobre politica? Tem juízo, vai mais é dedicar-te ao teu teatro que para isso te tornaste figura pública, com mais ou menos talento, com mais ou menos aparições nos telejornais, com mais ou menos entrevistas nas rádios, com mais ou menos objectos cénicos produzidos, é no tablado que mais se espera de ti, não venhas para aqui armado em intelectual, para o ser é preciso ter essa capacidade rara e inata de encontrar e jogar na cara de todos os outros seres vivos que te rodeiam citações várias, de autores, académicos, poetas, escritores, filósofos, importantes figuras da nossa história, é fundamental mostrar o quanto usas do teu precioso tempo para ler e reflectir sobre os tempos modernos e depois vir aqui regurgitar as razões que possam justificar ao mais comum dos mortais porque é que o mundo está como está.

2. Vamos lá, liga o teu computador e coloca uma música que seja alimento da inspiração que te falta. Uma suite de Joan Sebastian Bach tocada no violoncelo por Yo Yo Ma fica sempre bem, pena é que os leitores não possam além de ler, ouvir o jornal que tem em mãos, quem sabe assim esta página se tornasse mais suportável. A gente vem aqui, como quem procura alguma tirada de génio que possa colocar no facebook ou no twitter, nesta época ajustada a 130 caracteres, para desencadear algum debate carnificina entre anónimos pouco escrupulosos, e não encontra nada de jeito, apenas um conjunto de frases que não querem dizer nada, nem de lugares comuns esta página está plena, o vazio pode ser muito bom como ponto de partida, mas torna-se enfadonho como ponto de chegada. Temos que encher, sejam chouriços ou almas, temos que avançar, mais uma linha, mais uma frase, mais uma palavra, e pronto, o caminho faz-se caminhando, se não há inspiração escreve-se sobre a falta que ela nos faz, está encontrada a solução mágica, escrever pode ser isso mesmo, um desabafo, um caleidoscópico, um vómito de dentro para fora, mas é importante não abusar da paciência das pessoas, que mais tarde ou mais cedo a gente não aguenta tanta indefinição e, pura e simplesmente, vira a página. É a morte da crónica e a desacreditação total e irremediável do seu autor.

3. Vamos lá, o que dizer quando se está em pleno processo de criação? Como nos suga, por Deus!, como nos suga! Desta vez fala do que é estar diante de uma equipa de dezasseis pessoas, todas elas ali ao teu dispor, porque acreditam no teu talento, nas tuas capacidades, na tua criatividade, na tua aptidão para uma gestão condigna dos recursos humanos, na tua faculdade de ver em cada um alguém único com uma energia própria, é preciso dar uma resposta à altura, em primeiro lugar para toda essa gente. Depois vem o público, pois claro, os aplausos e o reconhecimento são a única moeda de troca, mesmo que estes se mostrem tantas vezes hipócritas e envergonhados. Olham para ti e esperam uma decisão. E agora? O que fazer com esta obra prima iniciática que nos veio parar às mãos? Não percas mais tempo, vem, indica, sugere, capacita, transmite, aponta, aprende, olha, ouve, cheira, impõe a tua autoridade de forma discreta, pede silêncio e concentração nas três a quatro horas de trabalho diárias que estes seres te ofertam diariamente, faz bom uso do tempo deles, que este é o bem mais precioso. Tem, pois, consciência do peso da tua responsabilidade, uma falha tua será sempre uma falha tua, um erro deles será sempre um erro teu, vai, abre e apura todos os teus sentidos e sê o mais exigente espectador de ti próprio. Pára, olha para este espelho e retira o teu umbigo do centro, não és tu que ali estás, é a humanidade vista através da arte cénica, tu tens noção da responsabilidade, do peso que tens sobre os ombros? Não, não tens, caso contrário, não estarias aqui.

4. Vamos lá, acabaste de ler num programa de uma peça de teatro isto: “a quem faz teatro bebendo dos erros alheios. Muitos de nós fazemos teatro vivendo os erros. Ajudando os que erram porque o caminho é a perfeição. Para o esgoto da história os silenciosos.” Que frase! Aprende, porra! Aprende com o Dy Fortes, o autor desta pérola que enriquece esta tua prosa sem nexo nem sexo, um homem que tem como actividade profissional evitar que as pessoas se afoguem, vê lá a ironia, que toca violoncelo de noite e ainda se predispõe a ofertar-se à criação artística sugando o que se passa à sua volta, abrindo o peito às balas da sabedoria, filtrando todas as informações que recebe. Sim, é isso mesmo, para o esgoto da história os silenciosos. Tu, que não consegues ficar calado, adoras isso, não é? Que bela bengala arranjaste agora, veio mesmo a calhar, confessa. Porque estás farto, não é, daqueles que nada fazem e falam, falam, falam nos corredores, nos cantos, nas esquinas, nos lugares pré-destinados de uma plateia de um qualquer auditório, nos cafés, nos bares, nos quartos escuros, nos guetos, todos assim, segredando, rindo-se maldosamente dos erros, dos passos em falso, das incongruências, das fraquezas dos outros. Para quê dizer-to na cara, olhando para os teus olhos incrédulos, o quanto és pequeno e falível, se isso só te tornará mais forte e um nada melhor no pouco que fazes? Para quê?, os sussurros são preciosos nos tempos que correm, não dão armas aos concorrentes, o segredo é a alma do negócio, nada como um pequeno sorriso sarcástico, uma conversa táctica e repentinamente interrompida à tua passagem, para te por a coçar a cabeça, a olhar de soslaio, mais uma pedrinha no lago do descrédito humano que, por si só, já tem muito com que se entreter.

5. Vamos lá, deixa-te de lamúrias. Quem corre por gosto não cansa não é? Olha que cansa, não te deixas levar pelos ditados populares, que isto das generalizações nunca deu bom resultado. Gosto que continues a desaprender em ficar calado, o silêncio só é bom quando com ele queremos dizer alguma coisa, o silêncio sem significado, sem substância, sem conteúdo, apenas à morte interesse e diz respeito. Fala, diz lá o que tens a dizer. Acorda esta gente adormecida, nem que para isso tenhas que recorrer a metáforas e artifícios, para alguma coisa tem que servir todo este tempo de ensaios, de reflexão, de neurónios irreversivelmente queimados, de buscas incessantes por soluções de entradas e saídas de cenas, de fugas ao óbvio, essa arquitectura do instante, essa construção no tempo e no espaço, que continua a ser a pedra de toque na forma como encaras a criação teatral. Agradece aos Deuses, a todos os que conheces, vai ao Google e procura mais alguns se esses te parecerem escassos, acende umas velas e incensos, vai a uma sessão espírita, faz o que for preciso para agradecer a espantosa junção de condicionantes que fizeram com que o grupo que contigo está neste momento, de corpo e alma, esteja a dar uma resposta tão eficaz quanto generosa a esse labor criativo que tanto te consome. Deixa-te de monólogos, isso não existe. Falamos sempre para alguém, nem que seja para nós próprios ou para alguma coisa. Olha bem à tua volta. Acabou a campanha eleitoral, mete as mãos nessa argila pestilenta que é o âmago da humanidade e mostra, com gestos, navalhas, sangue, suor, carne, lágrimas, gritos, cânticos, rituais, bênções e danças, como estamos tão longe do entendimento da nossa própria realidade, como ainda não percebemos o quanto estamos anestesiados, tanta é a dor que nos rodeia. Não há medos na arte cénica. É no abismo que estamos destinados a nos encontrar. Vamos lá.

Crónica publicada no jornal A Nação de 25 de Agosto



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5 comentários:

argumentonio disse...

vamos!

acordar-nos uns aos outros, ao jeito de estímulo/resposta, é jogo de receber sempre bem mais do que se dá, desde logo porque, se é de bom coração, dar é já receber!!

e depois, fazer!!!

e dizer, claro, com palavras, actos e teatros, com escrita e voz e gesto e cenário

o teatro faz parte do motor sem papel nem tinta mas que imprime histórias na alma, pela possibilidade de apreensão fundada na oralidade, modo primordial de transmissão de saber e cultura, aditivada pela expressividade cénica (desde o mind setting ao adereço mais utilitário) e visual, jogando ainda na proximidade (sim, o confronto, isso mesmo, olhar o espectador e fazê-lo, por sua vez, olhar) e nas possibilidades de imediata empatia

quanto às grandes frases, venham elas, a consumir com moderação e a debitar ainda com mais ponderação - mas encontro de imediato um suporte (como se tal fosse preciso...) para a tese dos erros alheios: há uns anos, numa admirável conferência, o então campeão mundial de xadrez Garry Kasparov declarou que os erros são fundamentais para se aprender e progredir, acrescentando que... já agora, preferia aprender e progredir com os erros dos outros!

mas ai de quem não aprenda também com os erros próprios - sim, convém estar à espreita, errar todos erramos, mas por vezes, talvez demasiadas, não nos apercebemos e, as pessoas são cruéis ou desatentas, nem sempre nos avisam...

e se uma crónica aparenta desinspiração para construir a sua própria inspiração, certo é que o teatro é uma fonte inesgotável de reflexão, ampliando a vida, até porque a vida não basta

desaforos então, sempre de acolher de espírito aberto, quem fala dá o peito às balas mas recebe o eco do despertar que semeia

além do mais, uma crónica semente, afinal

nada mau!

;_)))

Anónimo disse...

Tenho andado afastado, quem sabe em cura de ... palavras. Por que razão este teu belíssimo post só tem um comentário? Talvez a resposta esteja nesse poema da Sophia mais acima. Por mim, obrigado. Gostei. Muito!!! Gr Abç
ZCunha

Unknown disse...

Argumentonio, obrigado!

ZCunha, bom ver-te por cá! Abraço!

Manu Moreno disse...

APLAUSO-APLAUSO-APLAUSO!!!

...es um "Kraki"
e por ti
komprarei sempri
o bilheti
para assistir
o seu belo, em escrever.

Kel Abxom di Kuraxom!!!
M.Moreno

Fatima disse...

oi Moreno, a qto tempo. gostei da desaforada, emitando o nosso Moreno, kel abxom.