Café de Balanço

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Dois mil & 11

Janeiro. O mês da campanha eleitoral. Nada de novo. Do amor à terra à teoria do nós ou o caos, tudo valeu nesses dias em que se esbanjou dinheiro e injúrias. Um prolongado carnaval que meteu informação e contra-informação, vídeos publicados na internet, disfarces, e-mails forjados, golpes palacianos. Gente que veste camisolas ao contrário para confundir o adversário, cortes de electricidade com timing cirúrgico, a lei da selva para a conquista do poder. Valeu tudo, perdemos todos.

Fevereiro. Ano tremendo para as vozes que cantam a alma de Cabo Verde. Calou-se a maior filósofa popular que, por via do Finason, transformou sabedoria em musicalidade e vice-versa. Ficamos com as suas memórias, com a sua tremenda herança, com os seus seguidores. Grande e digna como a ilha de Santiago que tão bem cantou, Nácia Gomi deixa todo um país em lágrimas, no momento em que abandonou o mundo dos vivos.

Março. Foi revelado o novo elenco governativo, com um número de ministérios bem acima das necessidades, um dos quais seria mesmo extinto como consequência de uma feroz disputa entre irmãos, nas presidenciais. Mas se há ministério que faz sentido em Cabo Verde, é o da Cultura, onde foi anunciado o nome de Mário Lúcio Sousa. Conhecedor do meio, enquanto artista multifacetado, com formação jurídica de base, o novo ministro pegou na empreitada de iniciar praticamente do zero a aplicação de políticas públicas culturais com o mesmo espírito com que escreve, compõe ou canta: com ousadia, criatividade e atrevimento. Espera-se que não seja engolido pelo sistema.

Abril. É lançado em Lisboa, uma obra maior: “Me-xendo no Baú, Vasculhando o Ú”, do poeta Filinto Elísio, uma complexa proposta artística, com 35 poemas, belos e inovadores, numa edição de luxo, nunca vista em Cabo Verde. O livro inclui trabalhos do artista plástico Luís Geraldes e um CD com os poemas declamados por mim e por Nancy Vieira. Orgulho por estar associado a esta empreitada artística de grande valor que precisa de ser apresentada e divulgada nas nossas ilhas, com carácter de urgência.

Maio. O jogador Rolando festeja a conquista da Liga Europa pelo FC Porto com a bandeira de Cabo Verde nas costas: a audiência global foi proporcional ao orgulho de toda uma Nação. Entretanto, na cada vez menos pacata cidade do Mindelo, o Grupo de Teatro do CCP-IC estreia “Ñaque – Piolhos e Actores” onde partilho a cena com Manuel Estêvão, actor maior da sua geração. O teatro como espaço de homenagem. A arte cénica como lugar de celebração da vida.

Junho. Estreia o filme Éden, de Daniel Blaufuks, numa comovente sessão no auditório do Centro Cultural do Mindelo. Um documentário sobre as memórias do cinema numa espécie de requiem final ao cineteatro Éden-Park, que lá continua, a apodrecer aos olhos de todos na principal praça da cidade. Num tempo em que o mar e o cinema eram as únicas formas de escapar das ilhas. O valor das coisas e a falta de respeito pelo nosso património maior. O testemunho do cinema.

Julho. Um abraço sentido entre um ex-presidente da Câmara da cidade da Praia e um candidato a Presidente da República deu o mote para uma luta sangrenta que deixaria mossas no partido que sustenta o Governo: está na estrada a campanha eleitoral para as eleições presidenciais, e nada mais será como dantes na politica crioula. Será? Nem por isso, porque na politica o que parece, muitas vezes não é. No final, amigos como sempre. Com palmadinhas nas costas.

Agosto. Novo Presidente, uma surpresa para muitos ou a prova definitiva da maturidade democrática do povo cabo-verdiano. Num mês de enxurradas na cidade do Mindelo, o vendaval politico trouxe à baila Jorge Carlos Fonseca como o mais alto representante da Nação. Um presidente como coração de poeta. Desta vez, ficamos todos a ganhar.

Setembro. O mês do teatro, da festividade artística, da partilha em torno de uma mesma paixão, a arte cénica. Bodas de Sangue, um Garcia Lorca revisitado em crioulo, casamento, bodas, paixão, morte. Foi gratificante e cansativo, como é quase sempre quando nos entregamos de corpo e alma às coisas da vida. Os Saltimbancos, os meninos do coro Jorge Barbosa, um musical para as crianças que celebra a liberdade. Valeu cada gota de suor, cada lágrima de desespero. Assim sim.

Outubro. Deixa-nos o Presidente Aristides Pereira. Luto nacional. Homenagem aos fundadores da Independência. Há que ser digno das heranças deixadas. Éramos um país improvável, hoje somos uma nação orgulhosa e que quer ser melhor. Para alguns, já somo exemplo. Há que procurar a excelência. Para isso, urge mudar de mentalidades.

Novembro. Crise. Não se fala de outra coisa. Na Islândia, processaram e prenderam os banqueiros responsáveis pelo descalabro e o povo voltou a ter poder nas decisões. Os gregos não tiveram a mesma sorte. A fortuna dos primeiros foi não pertencerem à tirania capitalista, comandada pelos senhores do FMI. Parece que há outros caminhos. Pena que sejam tão pouco divulgados.

Dezembro. Adeus Cize, luz de nôs vida. Lágrimas. Mar de gente. Depois deste dois mil & 11, há que ser dignos das heranças deixadas.




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