Crónica Desaforada

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Limpemos as nossas cabeças

1. A maior angústia de qualquer criador, principalmente na área cénica, é que uma peça de teatro quando é apresentada morre ao som das palmas do público que a ela assiste e que, dessa forma, transforma o aplauso, mais ou menos contido, numa espécie de marcha fúnebre que provoca mais vazio do que satisfação. Melhor, uma satisfação sim, de dever comprido, como quem olha para trás e pensa: valeu a pena, ou podia, quem sabe, ter feito um pouco melhor. Mas depois as pessoas vão para as suas casas, e nós ficamos ali perante uma sala vazia, oca, ainda com resquícios e ecos de sons e energias resultantes do cerimonial cénico e não temos outro remédio senão apagar com uma borracha o que vivemos e nos prepararmos para começar tudo de novo. Nada é mais amargo, digo-o por experiência própria, do que um encenador sentado num auditório desabitado, olhando para um cenário que já lá não está, para um espaço que momentos antes estava cheio de vida, de cor, de magia e que agora já não tem mais nada, é apenas um espaço vazio.

2. Pode até parecer um pouco dramático esta ideia da morte ligada à arte cénica, mas podemos também pensar em limpeza. Nestes dias em que tanto se falou nisso, em que o Governo de Cabo Verde decretou um Dia Nacional da Limpeza como prevenção contra o mosquito da dengue, talvez seja o momento ideal para uma reflexão destas. Há que limpar a nossa mente das ideias, ritmos, cores, sensações e principalmente, apagar as nossas indubitáveis e indestrutíveis certezas, também como medida de prevenção, não contra alguma doença mas contra os nossos fantasmas, aqueles que nos transformam em seres pedantes, convencidos, arrogantes, merecedores do mundo e arredores, melhores certamente que o nosso vizinho do lado. Façamos essa limpeza e tornemo-nos amadores de novo, principiantes e aventureiros. Neste momento em que inicio a montagem de uma nova produção teatral o meu grilo falante não se cansa de me avisar: é hora de apagar todas as tuas ideias pré-concebidas, não sem reflectir sobre tudo o que já passaste, mas com a crença profunda de que o conjunto de experiências e emoções que daí resultaram não passam disso mesmo, algo que já passou. Para iniciar um novo processo criativo só temos dois caminhos: ou vamos pela utilização fácil de fórmulas já gastas e usadas, com alguma confiança de que não tem como não resultar de novo, ou adoptamos o desafio de que o vazio, seja ele cénico, intelectual ou vivencial, é a nossa única referência, o nosso inevitável ponto de partida.

3. Claro que sempre podemos questionar: e não se leva nada do que já se viveu? Não se aprende com os erros nem com os sucessos? Não devemos nós ter em conta de que só com uma cuidada análise do passado poderemos crescer enquanto seres humanos e criadores? Com certeza que sim. Mas uma peça de teatro, uma vez apresentada, como que fica congelada nas memórias de quem nela participou, de um ou do outro lado. O que se leva dela é muitas vezes um conjunto de impressões que nos fazem sentir mais vivos e seguir em frente. Na arte cénica a ardósia está sempre limpa. Talvez esteja aqui o segredo da nossa capacidade de perdoar quem nos magoa e virar a página. Entender quem olha para nós e para o nosso trabalho e tem dele uma imagem que nos parece injusta, imparcial, maldosa, preconceituosa. Não nos deixarmos afogar por ressentimentos que nada trazem além da provável possibilidade de nos encher apenas com sentimentos que corroem por dentro, nos transformam em meras máquinas de parada resposta, como se a forma como os outros olham para nós não fosse também o resultado directo da nossa acção, na vida e na arte.

4. Limpemos, pois, as nossas mentes. Agradeçamos a quem perde tanto tempo a analisar o que somos e o que fazemos, mesmo que em alguns casos o possa estar a fazer por desígnios dúbios. Tenhamos consciência de que certamente haverá nessa observação factos, circunstâncias ou julgamentos de carácter que fazem todo o sentido e que são o resultado de uma observação atenta e interessada, mesmo que pelos piores motivos. Há, como todos estamos cansados de saber, um grave problema de mentalidade neste país. Todos se queixam da falta de uma cultura critica que permita que se escreva, se fale, se comente ou se reflicta sobre o trabalho do outro sem que com isso sejamos inevitavelmente queimados em praça pública como nos tristes e obscuros tempos da Inquisição. Já estamos cansados de saber que quem não está comigo, não tem que estar necessariamente contra mim. Que quem reflecte sobre o outro e desse pensamento conceba um conjunto de elogios à obra ou à pessoa, não tem que o fazer porque tem interesses escusos ou segundas intenções, ou por ser alguém que espera dessa análise tirar algum beneficio imediato. Por outro lado, na mesma ordem de ideias, não é assim tão claro que quem se posiciona de um ponto de vista menos favorável, tenha que ser alguém a quem tenhamos que desafiar para um duelo de morte em defesa da nossa honra. Devo dizer aqui e agora que tenho aprendido mais com quem me critica do que com quem me elogia, e pouco me importa se essas criticas tenham nascido de um desejo de atacar ou destruir, com motivações pessoais ou outras.

5. Esqueçamos, pois, tudo o que já pensávamos que sabíamos e coloquemo-nos perante o espaço vazio. Não iniciemos esta caminhada com ideias pré-concebidas. Procuremos dentro de cada um de nós o impulso da criação. Reflictamos sobre o que pretendemos dizer e não façamos da nossa arte ou da nossa vida um mero depositário de frustrações, mensagens ou moralidades que pretendemos por esse intermédio impor a todos os outros. Olhemos para nós como o resultado de um espelho que não reflectirá necessariamente a imagem que temos de nós próprios, mas como o produto de milhares de imagens diferentes, distorcidas, caleidoscópicas, de tonalidades diversas, consoante aquele que se colocar perante nós ou em contacto directo com a obra que lhe ofertamos. Limpemos as nossas mentes e avancemos. É uma medida de prevenção indispensável ao criador, para que este não se transforme num robot ou numa máquina de impressão de fórmulas gastas. Aqueles que pensamos que não nos entendem ou fazem de nós um julgamento diferente daquele a que nos achamos no direito de ter, apenas estão a honrar-nos com o tempo que gastam a cogitar sobre a nossa pessoa e a nossa criação. Honra lhes seja feita, porque sem eles não seríamos ninguém. A vida não é feita de monólogos. E mesmo estes, quando tem lugar em determinados períodos das nossas vidas, não o são porque sempre falamos para – e com – alguém, mesmo que seja connosco próprios, com os nossos alter egos, com as nossas partes boas ou más, com os nosso diabos ou os nossos anjos, que tão naturalmente lutam para conquistar o seu espaço no processo de decisão individual e diário com que somos confrontados.

6. Lembremos isto: o autismo, o egocentrismo, a arrogância são doenças sociais tão ou mais perigosas que qualquer outra que possa ser provocada por um mosquito tropical. As medidas de precaução contra estas moléstias passam também por uma limpeza, não do cutelo, da rua, do bairro, da escola ou do trabalho, mas pelos insondáveis e misteriosos caminhos da nossa mente e da nossa alma, aquilo que a que alguns chamarão de mentalidade e outros, mais filosoficamente, a razão que nos distingue das máquinas e dos computadores, o cerne de sermos gente que sofre, ama, chora, ri e procura fazer da sua passagem pelo mundo dos vivos algo que faça merecer o aplauso final de todos os outros, aquele mesmo que é dado em momento fúnebre, no desfecho de uma peça de teatro.

Mindelo, 15 de Julho de 2011



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1 comentário:

Anónimo disse...

Meu caro quando a isso tudo que o senhor escreveu aqui e muito bem como sempre, só tenho pra te dizer o seguinte - e acho q foi aqui mesmo que o li - "Abraça a tua loucura antes que seja tarde demais"