Um Café no Éden Park

4 Comments



No momento em que a petição para a salvação do Éden Park atingiu as 950 assinaturas, recebi um depoimento tocante que partilho com todos até porque, estou certo, muitos já passaram por momentos iguais.

Então é assim:

"Tenho acompanhado mais ou menos de perto o teu blogue. Assinei a petição pelo Eden Park. Nem imaginas o quanto me toca a luta pelo Eden Park!

Essa sala marcou a minha vida. Menininha ía sempre ver os filmes para crianças que passavam domingo à tarde. Combinávamos em grupo e íamos comprar bilhete cedo para não apanhar a bicha enorme que se formava e para não correr o risco de não termos bilhete.

Dentro da sala, o odor a “mancarra”. Como era bom conseguirmos juntar os nossos tostões e comprar um saquinho de “mancarra” na Titota ou na Beta ou na Nha Marlene, figuras imponentes de ponta d´praça.

A meio do filme a banda sonora misturava-se com o som das cascas a caírem no chão feito chuva prometida, mais, os metais da banda da praça (dirigida pelo meu avô). A excitação aumentava, confirmava-se a possibilidade de ainda fazer uma roda antes de ir para casa. À saída as pisadas sobre as cascas. Meu deus que riqueza de som!

Quando eram filmes para gente grande via os meus pais se preparem para irem juntos. Depois nos contavam o filme quando chegavam a casa (claro, as partes que podíamos ouvir, o resto imaginávamos).

Vi muitos bons filmes que marcaram a minha juventude. Também vi muitos filmes de acção fantásticos. Bruce Lee era incrível. A euforia que no público gerava o facto de ter a certeza de estar do lado certo, ter a justiça nas suas mãos e quase poder decidir e agir sobre o filme. Quando a projecção era interrompida berrávamos “Dám nha dnher”!

Fui sozinha ao cinema, fui com amigos, fui, convidada por rapazes ... paixões da juventude, que tão bem se confirmaram no escuro do cinema. Ainda não foi inventado um dispositivo que substitua a magia do cinema! Onde quer que esteja no mundo continuo a ir sempre ao cinema.

Nessa sala vi um espectáculo de dança nos anos 80, em que a minha irmã participava (ela tinha um fato preto e um esqueleto desenhado em verde fluorescente por cima). O fato ficou lá por casa, às vezes vestia-o e imitava-os à frente do espelho. Nessa sala vi os espectáculos de dança do grupo Crêtcheu. Nessa sala vi o espectáculo da Clara Andermatt e fiz a minha primeira experiência em cena de dança contemporânea. Nessa sala li uma apresentação para um concerto do Fernando Tordo (lembro-me de estar ali, de pé em frente à plateia, de mãos trémulas e voz tímida).

Mais importante ainda, nessa sala dancei pela primeira vez com um grupo de amigos, que viria mais tarde a chamar-se pelo nome Compass, num dos muitos concursos de Miss, na altura frequentes em São Vicente. Foi atrás da cena dessa sala que votámos o nosso nome. Conheço todos os recantos desse espaço. Foi nessa sala que o Compass apresentou as suas duas criações de noite inteira....As minhas primeiras e verdadeiras experiências coreográficas: Compass em épocas e Céu d´pedra. Nós, do grupo, estamos espalhados pelo mundo como bons cabo-verdianos (América, França, Portugal, Austrália, Cabo Verde). Eden Park une este grupo desfragmentado.... Lembram-se de como nos encavalitámos uns nos outros para podermos manipular a tela de projecção? Já eram talvez 3.00 h da manhã, mas estávamos atrasados para o espectáculo do dia seguinte. Meu deus que força!

Peço perdão pelo meu tom nostálgico. Passado é passado. Senão ressuscitávamos os mortos, que nos esburacam pela vida toda. Mas qual é uma das características físicas da morte ou da doença? Não será a nossa obediência perante a gravidade? A horizontalidade a vencer a verticalidade? Eden Park está de pé, doente mas de pé....vislumbro sem dúvidas, a sua capacidade de andar ou pelos seus próprios pés ou encavalitado sobre nós, sim porque se o pusermos às costas e o fizermos andar, ele anda. De cada vez que regresso sinto, com uma certa vaidade devo dizer, o orgulho de fazer parte desta ilha (gente de São Vicente tem brio e um sentido estético particular). Nem mesmo as construções de mau gosto que têm povoado esse chão cegam os que nele habitam, podem inebriar, diminuir a visibilidade, tal é o céu que estes conquistam, mas não os cegam.

Brio é o que nunca podemos perder. Brio sim de ter um cinema de não sei quantos lugares e que é usado por gente da ilha. Vamos trazer o Eden Park connosco às costas, se dividirmos o peso, não o sentiremos!

P.S. Ontem à noite fui ao cinema, coisa que nem tu, nem os meus amigos e nem a minha mãe podem fazer! "

Marlene Freitas - coreógrafa e bailarina profissional

Na fotografia, outro momento marcante: o Grupo Cénico Korda Kaoberdi deixa-se fotografar na porta do Éden Park após a sua única apresentação neste espaço histórico.




You may also like

4 comentários:

Jorge Silva disse...

Marlene falou e disse! Emocionante!
Sucessos sempre. Bjs

Ariane Morais-Abreu disse...

Obrigada, merci, Marlène por teres partilhado connoscos, os que partiram ha muitos anos e tambem esburacam, alguns instantinhos de felicidade e a memoria de uma ilha que esta perdendo o compasso do tempo, do seu fôlego. O critch das toradinhas e inesqueciveis mancaras podera talvez despertar a Nossa Senhora da Luz e iluminar a sala das nossas projeçoes fictivas e reais. Um feliz 2010 a todas as salas de cinéma no mundo!!

Anónimo disse...

lindo marlene...fizeste-me recordar ao passado! lembro como eu era fan nº1 do grupo compass, o qual os meus irmaos e primos faziam parte! bons tempos.bjoss titass

Ariane Morais-Abreu disse...

JB, tentei carregar esta foto do Korda Kaoberdi por estar la a irma (falecida pouco tempo depois) do meu marido e nao consegui. Peço-te o favor, se for possivel, de envia-la para a minha caixa de correio afim de conservar uma das rares recordaçoes visuais daquela epoca de grande efervescência artistica. Os meus anticipados agradecimentos!