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Revelação

Trancou-se no laboratório da escola e, motivado pela revista pornográfica, ejaculou sob a lente do microscópio. Curioso, pôs-se a observar no líquido seminal a multidão de criaturinhas que nadavam afoitamente. Admirou-se. Todas vieram dele. Pensamento óbvio, do qual adveio outro: na verdade, os espermatozóides eram ele. Sim, todos eram ele, multiplicado aos milhões.

Daí lhe veio a revelação. “Talvez Deus nos veja assim”, pensou. “Somos Ele. Todos nós. Ele, multiplicado aos biliões.”

wilson gorj 






Na noite em que fiz 35 anos sonhei que estava diante de um espelho e que esse me devolvia um reflexo envelhecido: algumas rugas, muitos fios grisalhos. Tinha eu 53 anos. Toquei no espelho. A superfície recebeu meu toque com a liquidez de uma poça. Sumiram os dedos, a mão. O braço inteiro. Fui tragado para dentro dentro do espelho. Mal abri os olhos e me vi no mesmo lugar, ou melhor, do outro lado, onde tudo era igual a antes, mas de forma deslocada: o que era esquerdo tornara-se direito, e vice-versa. Olhei novamente para o espelho. A imagem refletida aparentava os meus 35 anos vividos. Tornei a tocar o meu reflexo. A superfície dura, fria. Impenetrável. Notei meus dedos envelhecidos. Como todo o resto em mim, 18 anos mais velho.

Por gORj





REVERTERE AD LOCUM TUUM

Por determinação do falecido, a viúva cremara-lhe o corpo e encomendara um caixão.

Parentes distantes e uns poucos colegas de trabalho compareceram ao velório sem, no entanto, suspeitarem da fraude: no lugar do defunto, o caixão comportava apenas sacos de areia.

Atendendo, ainda, à outra extravagância póstuma, a viúva fez um bom café, e o serviu a todos.

Ninguém suspeitou que velava um corpo ausente. Presente apenas na lembrança – e na xícara de cada um.

Wilson Gorj (link)






O Encontro

A vida em sociedade sempre lhe fora hostil, razão pela qual buscava a solidão. Encontrara, portanto, o lugar ideal: um casarão mal-assombrado, cujo aluguel cabia folgado em sua aposentadoria. Pudera. Ninguém conseguia morar no local por muito tempo: barulhos de corrente, louças voadoras, vultos furtivos – tudo isso desvalorizara drasticamente o imóvel.

Ele, no entanto, não dava a mínima. Convivia tranquilamente com os fantasmas da casa – outrora cenário de um incêndio que vitimou toda uma família, a mesma a quem atribuíam aqueles distúrbios sobrenaturais.

Um dia, ruídos no quarto despertaram o novo inquilino. Ele abriu os olhos e, na semi-escuridão, vislumbrou ao seu redor um grupo formado de dois adultos, um adolescente e uma criança. Todos lhe sorriam.

Deles não sentiu medo, pois já sabia quem eram.

O chefe da família adiantou-se e estendeu-lhe a mão: “Seja bem-vindo”.

O inquilino estranhou. Afinal, convivia com eles há meses. Por que então só agora apareciam para lhe dar as boas vindas?

A estranheza desfez-se quando se voltou para cama de onde se levantara. O que viu não o assustou; pelo contrário, trouxe-lhe até alegria. Já não teria mais necessidade daquele corpo solitário. Agora seria diferente. Havia encontrado uma família.

Gorj (fonte; aqui)





A Culpa

Nunca assumia os próprios erros. Sempre transferia sua culpa para os outros.
Por essa razão, convertido, adequou-se perfeitamente à fé evangélica.

Agora, para tudo o que faz de errado, Satanás é o culpado.


Wilson Gorj em Sem Contos Longos






Viagens

Quando criança queria ser ASTRONAUTA.

Chegando à adolescência, conheceu uma companhia de teatro, por meio da qual sonhava se consagrar ASTRO de cinema.

Abandonou o palco. Quisera BRILHAR, mas só lhe davam papeis apagados.

Na música haveria de ter mais êxito. Tantos alcançavam um sucesso METEÓRICO, por que não ele?
Por muitos anos investiu no sonho de se transformar em ESTRELA do rock.

Infelizmente, a carreira de pop STAR não DECOLOU.

Cansado de viver no mundo da LUA, resolveu firmar os pés no chão e tirar sua vida do BURACO NEGRO em que se metera.

Fase NEBULOSA. Encarou cada trabalho, cada RABO-DE-FOGUETE.

Ao fim das contas, estabilizou-se em um emprego decente.

Nada de EXORBITANTE. Hoje é motorista da viação COMETA.

gORj (aqui)




Um brinde à vida

Numa noite a Morte veio buscá-lo.

Antes de partirem, ele implorou-lhe um último copo de vinho: “Aceita?”
Ela aceitou.

Os dois embebedaram-se.
A morte partiu sozinha.


Por Wilson Gorj, em "O Muro e Outras Páginas"






Hipócrita

Em casa, marido fiel; no quarto da amante, um devasso. Em público, funcionário honesto; às escondidas, um corrupto. Para sociedade, um homem direito; para si mesmo, o rei da malandragem.
A todos se mostrava afeito à verdade; a ninguém confessava suas mentiras.
Mentia principalmente para o filho.

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Livro aberto. O menino estuda, enquanto o pai lê o jornal em sua poltrona. De repente, o filho dispara a pergunta:
– Pai, o que é hipocrisia?
O homem fecha o jornal. A resposta sai pronta:
– Hipocrisia, meu filho, é quando a pessoa finge ser algo que não é.
O menino continua:
– Conhece alguém assim, pai?
– Ô se conheço! Tem muita gente hipócrita por aí.
E pondera:
– Nem todos são como o seu pai... Verdadeiro.
O garoto coça a cabeça. A curiosidade insatisfeita:
– Pai, dá para saber quando uma pessoa é hipócrita?
– Dá, sim. Mas não é fácil. Eu mesmo demorei muito para aprender.
– Então me ensina, pai. Quero saber quem é hipócrita.
– No momento certo, filho. Ainda é cedo para você aprender essas coisas. Volte a estudar. E fique tranquilo. Quando você crescer, eu estarei aqui, pronto para lhe ensinar tudo o que aprendi.

Wilson Gorj




Fígaro!

Ignorava que a amante era casada com um barbeiro.

Por ironia do destino, um dia foi barbear-se, justamente, no salão do marido traído.
O destino não é só irónico. Às vezes, é também cruel.

A par de tudo, o barbeiro lavou a honra com sua melhor navalha.


Wilson Gorj in «Sem Contos Longos»







Enquadrado


Havia um bloqueio militar na estrada. A polícia estava à procura dos assaltantes de um banco, do qual há poucas horas roubaram uma pequena fortuna. Policiais armados paravam motoristas, revistavam automóveis.

Numa dessas revistas, encontraram alguns pacotinhos de maconha no porta-luva de um fusca meia-oito. Flagrado e enquadrado como traficante, o jovem motorista foi condenado a dez anos de prisão.


Tivesse roubado um banco, teria amargado apenas cinco.


Wilson Gorj










Papado

Chegou à chefia do Seminário. Mesmo assim, ainda não se contentava. Seu desejo era alcançar o posto máximo da Igreja. Imaginava-se no Vaticano, acenando para as nações.

Caminhava na rua, absorto nesta visão, quando um caminhão desordenado encurtou-lhe os planos.

Virou papa.


Wilson Gorj (ilustração: "Cruz y Tierra, de Tàpies)







Voltou à hora do almoço. Cruzou a porta da cozinha e foi direto ao fogão vasculhar as panelas.

Constatou desapontado que a comida estava fria. Pudera, já eram quase duas da tarde... Que esquentasse, então. Do armário apanhou o fósforo (como sempre escondido prudentemente atrás da lata de açúcar). “Isto na mão de criança é um perigo.”

A requentar o almoço, sentou-se na velha cadeira e, depois de acender um cigarro, pegou a garrafa térmica, com a qual encheu um copo de café.

Levou-o à boca. Nem bem sorveu, cuspiu o café frio.
– Quantas vezes falei pra fechar bem esta garrafa?!

Imóvel no limiar da cozinha, a esposa não sabia o que responder. Estava tão perplexa quanto o filho de doze anos que a agarrava pela cintura, olhando aquele homem com um misto de temor e curiosidade.

Natural, porém, que o garoto não se lembrasse do próprio pai. Afinal, não o viam há quase dez anos. Desde a manhã em que ele saiu por aquela mesma cozinha, com o pretexto de ir à padaria comprar um maço de cigarros.

Wilson Gorj (link)






Perdas Sucessivas

Perdeu a hora e, por consequência, o ónibus.

Pelo atraso, que azar!, perdeu o emprego. Desempregado, quase perdeu a cabeça; quisera se matar, mas, felizmente, perdeu a coragem.

Iniciativa perdida, foi logo encher a cara.

No boteco, reencontrou um amigo com quem há muito perdera o contacto.

O sujeito estava perdido no mundo do crime. Envolvido com uma quadrilha de assaltantes. De maneira que o convidou para o próximo assalto.

O que tinha ele a perder? "Perdido, perdido e meio", pensou.

No banco, houve troca de tiros. Balas perdidas.

Uma dela o encontrou.
Perdeu sangue. Tanto que acabou perdendo os sentidos. Quando o socorro chegou, não perderam tempo com ele. Já havia perdido a vida.


Wilson Gorj (fonte: aqui)




Rumo ao Desconhecido


A ânsia de conhecer lugares novos levara-o a percorrer o mundo todo. Não havia canto do planeta onde um dia não estivera.

Envelhecido, finalmente fixara-se na sua cidadezinha natal.

Ali, entediava-se, quando uma forasteira a cavalo o abordou:

– Há um lugar que você ainda não conhece. Quer vir comigo?

Não pensou duas vezes. Montou na garupa e com ela partiu. Na pressa, nem percebeu que seu corpo ficava para trás.



Wilson Gorj in «Sem Contos Longos»





Afortunado

Sacrificou toda sua juventude em troca de um futuro melhor. Anos e anos, trabalhou duro até chegar à velhice amparado por invejável fortuna. Hoje, orgulha-se: não precisa mais trabalhar. Cabe-lhe agora usufruir tudo o que conquistou.

É o que tem procurado fazer. Nas noites de sábado, por exemplo, gosta de circular pelas ruas da cidade, refestelado no conforto de sua limusine. Sempre pede ao chofer para parar diante da Praça Central.
Do automóvel gasta um bom tempo a olhar os jovens de mãos dadas, passeando por entre os canteiros, beijando-se sob a copa das árvores...

Em silêncio, inveja-os. Para eles, o futuro não vale mais que um beijo.

wilson gorj (fonte aqui)






O Poeta e o Contista

As coisas não andam fáceis para os profissionais das letras. Por essa razão, tanto o Poeta quanto o Contista tiveram de arranjar outra ocupação mais rentável do que escrever poemas e contos. Cada qual se arranjou com uma profissão afim. Acostumado a adornar e lapidar versos, o Poeta optou por ser joalheiro. E ao Contista, tendo em vista que era mestre na arte de encaixar palavras, ajustando e acertando-as, coube-lhe, portanto, o ofício de relojoeiro.

Após o que, procurou o Poeta e propôs uma sociedade.

Excelente parceria. O negócio vai de vento em popa. Sonham agora com filiais, franquias. Voltar às letras, jamais.

Wilson Gorj (fonte: aqui)







A Vida Continua

No dia do Juízo Final todos foram convocados: vivos e mortos compareceram perante Deus para serem julgados por seus atos. Os bons subiram ao céu; os maus desceram ao inferno. Largados aqui, ficaram apenas os ateus. Apenas os bons ateus, pois, se por um lado a descrença os privara do paraíso, por outro a bondade os salvara do fogo eterno. Condenados a povoar a Terra por toda a eternidade, não sabiam ao certo se estavam sendo recompensados ou punidos.

Fosse o que fosse, logo tomaram a decisão de se dividirem em pequenos grupos, cada qual seguindo um rumo diferente.

“A vida continua”, ponderou uma figura encapuzada, que a tudo observava à distância. Seu olhar voltou para o que trazia nas mãos. “Agora não preciso mais disto”, concluiu.
E livrando-se da foice, seguiu no encalço dos homens.

wilson gorj (fonte: aqui)