Dôs com Jorge Joe Martins

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Conversa com o fotógrafo Jorge Joe Martins, que se tem destacado no meio pela sua imensa paixão pela recolha de imagens antigas, possuindo hoje em dia um espólio de fazer inveja e que reflecte, através das fotografias, muito da história deste nosso pais. O que fazer com ele, esta é a grande questão do momento.


Como é que te vês enquanto fotógrafo? Qual é o teu processo de criação na fotografia?

Jorge Joe Martins: No meu caso é uma coisa que surge muito de uma forma intuitiva. Eu comecei na fotografia muito cedo, sempre tive essa paixão, desde miúdo. Comecei por brincar com umas máquinas pequenas, tirava as fotografias e depois abria aquilo que ver o que é que lá estava e claro, queimava o filme todo. Foi preciso o Djibla me explicar que a revelação era com ele. Eu só tinha que carregar no botão! Depois quando cheguei a Portugal, comecei a estudar, fui para a Universidade e nessa altura comecei a praticar um pouco mais. Acabei por ir parar a um estúdio de fotografia industrial e publicitária, como assistente. Era um local onde a fotografia era encarada de um ponto de vista estritamente técnico, ou quase. Reproduzes o que uma agência de publicidade te dá como tarefa e entregas-lhe o produto na mão. Aprendi muito lá. As bases.

E como se passa do campo da técnica para a arte?

‪‪A técnica é pura. Ou sabes ou não sabes. Considero que podes ser um bom fotógrafo sem conhecer bem a técnica. Basta lembrar que hoje em dia a maior parte dos fotógrafos nem imprime nem revela. E a fotografia digital não vem mudar isso, ao contrário do que se possa pensar. Antigamente fotografavas, revelavas e imprimias. Agora, fotografas, não tens a revelação química mas tens todo o trabalho de produção em computador. E se não dominas as ferramentas que o computador tem não consegues fazer um bom trabalho.

És uma pessoa que acompanha de muito perto o que se passa em Cabo Verde, nomeadamente nessa tua área de eleição, como é que tu vês o panorama da fotografia, hoje em dia, no arquipélago?

A minha percepção dessa realidade não é muito clara. Mas penso que tenho uma ideia de como as coisas se processam: em Cabo Verde, há fotógrafos que exercem a profissão que passa basicamente pela chamada fotografia social, e que são aqueles que fazem as fotografias para os documentos, casamentos, baptizados e eventos. Há algumas figuras que estão a aparecer e que encaram a fotografia como um produto de criação artística. Depois há muita coisa onde se vê alguma deficiência técnica, porque lá está, tem-se aquela ideia de que com o digital toda a gente pode fazer fotografia artística sem qualquer preparação. E isso está longe de corresponder à verdade.

E o aproveitamento, recuperação, arquivamento, catalogação das muitas imagens antigas que existem por aí, que sei que tem sido uma das tuas maiores preocupações?

Eu comecei a preocupar-me com isso há mais de vinte anos, porque via sistematicamente a Foto Melo fechada. Fechou e nunca mais abriu. E foi uma casa que, para começar, já era centenária quando encerrou. Tinha um percurso fotográfico invejável, com um espólio assombroso. E isso associado a outros fotógrafos como o José Vitória, por exemplo.

Todo o teu arquivo pessoal de imagens relacionadas com Cabo Verde que foste acumulando durante esse tempo, corresponde hoje a quantas fotografias antigas recuperadas?

Do projecto de recuperação do património fotográfico, devo ter cerca de mil e quinhentas imagens antigas. Além de todos os outros documentos que tenho, jornais, revistas e outros.

Já houve propostas ou projectos concretos para a utilização dessas imagens, para que nós que estamos fora desses ambientes dos arquivos, as possamos conhecer também? É público que tens feito alguma divulgação utilizando as redes sociais da Internet mas há algo mais substancial previsto? Um livro, a entrega do espólio a alguma instituição pública como o Arquivo Histórico Nacional, por exemplo?

Houve um projecto que foi oferecido à Câmara Municipal do Mindelo e que foi completamente boicotado.

Que projecto era esse?

Passava pela recuperação desse enorme espólio dos fotógrafos do Mindelo através de uma requisição da própria instituição Câmara junto dos vários herdeiros, não para posse da Câmara, mas para recuperar essas imagens da cidade e colocar uma importante mostra à disposição das pessoas, locais e habitantes. E é um projecto que se poderia muito bem estender a todas as ilhas, porque em todas as ilhas há uma história contada pelas fotografias que nelas são tiradas.

E esse material seleccionado seria apresentado em livro e em forma de exposição?

Nesse projecto em concreto estava prevista a edição de um livro e ainda a edição de um DVD. E depois juntar historiadores e sociólogos, para analisar essas imagens e potenciar toda a informação que elas contêm. Por exemplo, publiquei na Internet há algum tempo uma imagem que provocou alguma celeuma: era uma fotografia de um orfanato, vulgar, de muito má qualidade técnica mesmo para a época, só que adquire uma outra dimensão porque nela estava uma menina chamada Cesária Évora. Assim como fotografias do Liceu Gil Eanes onde podemos ver o Amílcar Cabral, Baltasar Lopes ou Aurélio Gonçalves, que por terem estas importantes figuras da nossa história, adquirem uma importância redobrada.

E que importância achas que tem sido dada todo esse teu trabalho? Tens sentido algum interesse especial das autoridades, locais ou centrais, por exemplo?

A responsabilidade é de todos. Há uma responsabilidade politica, como é lógico, porque quem está no poder tem essa obrigação de preservação do nosso património. Parte desse meu espólio originou, primeiro, uma exposição que esteve em S. Vicente. Depois, a Embaixada de Cabo Verde em Lisboa, nas comemorações do centenário dos claridosos, promoveu uma segunda mostra, que esteve numa das melhores galerias da cidade, na Praça do Município. Na época, o Ministro da Cultura ainda manifestou a vontade de ter essa exposição no encerramento do congresso dos claridosos mas o convite nunca apareceu. Também o Presidente da Assembleia Nacional, que visitou a exposição em Lisboa, manifestou o mesmo interesse, de levar a mostra para Cabo Verde. E a resposta era sempre a mesma: que fizessem o convite que eu estaria disposto a montar a exposição lá onde ela fosse solicitada. Mas tudo isso tem custos, não é? Toda a recolha do espólio tem sido feita por paixão, nunca para ganhar dinheiro, e o que eu mais queria era que todo esse material pudesse ser transformado num bem público.

Para quando uma história da fotografia cabo-verdiana?

Não sei. A verdade é que por vezes tenho a sensação que estamos a trabalhar para o boneco. As pessoas pura e simplesmente esquecem-se da importância da utilização deste material como ferramenta da educação, da promoção do pais e da preservação da sua história. Há muita coisa que existe sobre a história de Cabo Verde que está ao Deus dará.


Publicado no jornal A Nação





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