Homenagem: Ano Nobo

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O primeiro contacto que tive com a obra teatral de Ano Nobo foi graças à revista Fragmentos, que publicou duas peças dele. Uma delas, “O Julgamento de Totó Montero”, chamou-me particularmente atenção. Uma peça totalmente escrita utilizando a rima, em versão bilingue, crioulo e português, um tema popular. Isto faz-me lembrar algo, ou alguma coisa. Mas o quê? Ah, claro! Gil Vicente. Que é ainda hoje considerado por muitos o mais importante dramaturgo da história da literatura em língua portuguesa. Escritor popular, apreciado por todos, inclusive na Corte, gostava de utilizar o verso como instrumento do seu trabalho, e não poucas obras estão escritas em português e castelhano, adoptadas conforme a situação e as características dos personagens. As ligações que se podem fazer entre um e outro são óbvias, e o sonho de se adaptar Gil Vicente em crioulo, utilizando a mesma técnica avançada de escrita dramatúrgica rimada, já esteve mais longe, graças ao exemplo que nos foi deixado por Ano Nobo. Mostrou-nos que é possível. Basta que haja talento e sabedoria popular.


A morte de Ano Nobo pegou-me ainda mais de surpresa pelo facto de o ter entrevistado na véspera. Algumas horas antes da sua morte física, conversamos longamente no quintal da sua casa, bem acompanhados pelo jornalista da Rádio de Cabo Verde, Elisângelo Ramos, e fiquei a saber bastante mais sobre o seu interesse pelo teatro e pela escrita de peças. Tiramos fotografias juntos. Convidei-o para estar presente no Festival Mindelact. Trocamos promessas de futuros encontros e discussões à volta da escrita teatral. No dia seguinte de manhã, foi outra admirável defensora da nossa cultura, Matilde Dias, quem me transmitiu a triste nova. Foi um choque tremendo.


O seu funeral foi uma cerimónia comovente e à altura da importância deste homem e do amor que o seu povo, principalmente o que com ele conviveu de perto, nutria por ele, e que era correspondido por uma generosidade que havia de ser durante toda a sua vida uma das suas imagens de marca. Cantando ao longo do cortejo as belas mornas que nos legou, chorando a morte, brutal e inesperada. O Governo, a Assembleia Nacional, a Presidência da República, todas estas instituições estavam representadas ao mais alto nível. Nada mais certo e justo. Só espero que tenhamos aprendido uma das lições que a vida de Ano Nobo nos deixou: a questão da urgência na implementação dos direitos de autor, e de alguma entidade que os defenda. Não se compreende que um homem que compôs ao que se diz mais de 400 composições, utilizadas por toda a casta de músicos nacionais nos últimos 40 anos, tenha tido que solicitar dinheiro emprestado para tratamento médico no exterior. Agora, como se diz, casa assaltada trancas à porta. Esperemos que este caso e o respeito que Ano Nobo deve merecer, principalmente aos músicos nacionais, que em peso fizeram questão de se despedir de um amigo e de um colega, sirva também para acelerar um processo que parece não ter fim à vista. Antes que alguma outra casa venha a ser “assaltada” novamente.

Imagem: foto de João Branco




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