Crónica Desaforada

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Somos todos amigos

1. Cabo Verde, como qualquer lugar do mundo, tem aspectos formidáveis e outros com os quais é muito complicado lidar. Esta redundância que inicia a presente crónica serve apenas para lembrar o quanto estamos perante um lugar, uma cidade, uma ilha, um pais, uma Nação, que tantas vezes se confronta a si própria, que chora e ri, por vezes de forma leviana, como num zouk love, vezes outras com profundidade sentida, como numa morna. Há alturas em nos deixamos levar pelo ritmo frenético de um funaná e nos esquecemos do parceiro que carregamos na passada e no gingar desvairado das cinturas, com mais ou menos cola, mais ou menos suor, mais ou menos sensualidade latente.

2. Assim, aqui encontramos os defeitos dos lugares pequenos e as vantagens de um naipe paisagístico inacreditável que faz com que cada fotografia tirada de uma qualquer máquina se transforme de imediato num cartão postal de beleza inolvidável. Mas aqui como noutros locais, só a natureza conserva a verdade que tantas vezes o coração dos homens conspurca. Só nas montanhas podemos sentir a poesia que não se resume a palavras ocas de quem se alimenta do sofrimento dos outros. Só um banho de imersão neste mar azul deste arquipélago pode lavar a alma de um ser vivente num mundo como aquele em que vivemos hoje.

3. Daqui que um dos temas de conversa mais comum que tenho tido com amigos e conhecidos, em cafés reais ou virtuais, seja o tema da amizade, melhor, daquelas amizades que parecendo que o são, mostram não o ser, onde palmadinhas nas costas e anúncios de admiração mútua subitamente se vêem transformados em injúrias, calúnias, maldades, má-língua, conversas de corredor não assumidas, facadas ao virar de cada esquina. A amizade está em declínio e a solidão em ascensão, escreveu o psicanalista brasileiro Raymundo de Lima num brilhante artigo sobre o tema, referindo-se ao conceito de “modernidade líquida”, da autoria do sociólogo polaco Zygmund Bauman, que propõem, por sua vez, uma nova visão sobre a modernidade, voltada para a fluidez das relações inter-pessoais.

4. A hipocrisia entre os homens não é símbolo dos tempos modernos, sempre existiu, sempre existirá. Isso parece claro. Em todas as épocas há histórias terríveis de mentiras, traições, golpes palacianos entre aqueles que um dia eram amigos sinceros, no dia seguinte inimigos declarados. Mas há alturas em que a hipocrisia sobressai como a mais possante e tenebrosa característica humana que, tal como os vírus, se entranham sem que os possamos identificar, provocam sintomas estranhos, alguns mesmos provocando a morte e quando damos por ele, já é tarde demais, o mal está feito, os estragos por contabilizar indiciam uma invasão nos corpos, nos genes, na carne, no sangue praticamente irreversível.

5. Ninguém é amigo de ninguém, já me disseram várias vezes, geralmente depois de alguma desilusão do género. Eu, teimoso, continuo a acreditar. Que há gente em quem se possa confiar, que há companheiros para uma vida inteira, que há irmãos por afinidade por quem fazemos tudo ou, no mínimo, por quem estamos dispostos a, em qualquer circunstância, dar dois minutos de atenção quando para isso formos solicitados. Como optimista militante, preciso de acreditar que os valores que a amizade precisa e dos quais se alimenta e se justifica não só fazem algum sentido como são possíveis de existir e de acarinhar.

6. Devíamos aproveitar mais o tempo e o espaço que as ilhas nos dão. Quando leio as declarações de amor de um homem como Paulino Dias pela sua ilha Santo Antão, fico com alguma esperança de que nem tudo está perdido. Devíamos transformar a dificuldade de viver numa pequena aldeia – todos os habitantes de Cabo Verde juntos não chegam para compor uma cidade de tamanho médio num qualquer pais Sul Americano – em vantagens nossas. Aqui não há lugar para o anonimato, todos se conhecem, todos já tivemos algum tipo de relacionamento com praticamente todas as pessoas com quem nos cruzamos durante um dia normal.

7. Andamos na rua e somos cumprimentados de forma afável pelo condutor do camião que faz a recolha do lixo, pelo funcionário da CV Telecom que vem verificar uma avaria da Internet, pela senhora da mercearia Mendes & Mendes, pelo homem que vende os jornais numa cadeira de rodas na rua de Lisboa, pelo gerente do Café Portugal, pelo policia de trânsito que está ali na esquina da Praça Nova, pelo engraxador da Pracinha da Igreja, pelo amigo que temos como salva vidas na praia da Lajinha, que também toca violão e é actor nos tempos livres, por algum anónimo que nos pára na rua e nos pergunta se no próximo fim-de-semana há alguma peça de teatro na cidade.

8. Geralmente diz-se que é entre as pessoas da mesma área que os piores sentimentos se acabam por revelar. Não sei se é de facto assim. Procurei sempre, e assim permanecerei, entender as dores e as mágoas dos artistas da nossa terra e nunca me viram, nem virão, maldizer sobre quem quer que seja que dedique a sua vida a essa tão nobre tarefa que é a da criação artística. Muitas das pessoas que mais admiro neste pais são artistas das mais diferentes áreas, na música, na literatura, no teatro, nas artes plásticas, na fotografia, na dança. Mesmo sabendo que muito do meio é dominado pelo disse que não disse, certamente haverá sempre alguma justificação para certas atitudes estranhas que se desviam da importância, da qualidade e do significado das obras dos autores que as produzem.

9. As campanhas eleitorais são boas provas para se medir o valor de uma amizade, tal é a radicalização dos discursos. Tive amigos – espero ainda os conservar! – dos dois lados da barricada, e lamento utilizar aqui este termo, porque não devíamos falar de barricada, mas sim de um campo aberto de discussão de projectos, convicções e ideias. Um posicionamento politico é sempre considerado uma tentativa de aproveitamento de alguma mais valia pessoal e talvez por isso mesmo estejamos tão cheios de pessoas que pensam muito sobre tudo e falam rigorosamente nada sobre aquilo que pensam. O campo da opinião pessoal está minado e é compreensível que haja tão pouca gente com coragem para nele entrar sem medo de sair moralmente despedaçado por tal atrevimento.

10. Tenho tido a sorte, e a opção, de utilizar diversas plataformas de comunicação para pensar pela minha própria cabeça e é normal que tenha que fazer algum exercício para aguentar a cabeça, o coração e o estômago quando confrontado com certas atitudes que são, acima de tudo, resultados de uma mentalidade que infelizmente ainda perdura e se alimenta. Continuo convencido que não precisamos disso, que devemos utilizar a nossa capacidade de comunicar, olhos nos olhos, e construir amizades sólidas, sustentáculos e barcos de salvação neste mundo à deriva.

11. “O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos”, escreveu Bauman no seu ensaio. Pegando na deixa, direi que vazio ficará o nosso pequeno mundo individual se nele não deixarmos entrar aqueles que acreditamos serem os nossos maiores amigos, aqueles que não te viram as costas, que tem a coragem de te criticar olhando na cara. Para que a palavra alma, que é tão cara à poesia e aos artistas, não se transforme subitamente em lama, como acontece por vezes quando, precipitadamente, redigimos textos sentados diante um computador.


Mindelo, 08 de Abril de 2011

[ilustração de Bento Oliveira]




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7 comentários:

Joaquim Saial disse...

Numa classificação de 0 a 20, este texto merece 4532 valores.
Excelente! Do melhor que tenho lido, em prosa e ideia.

Um grande abraço
JS

Anónimo disse...

Estranhei quando li q um dos temas + frequentes nas tuas conversas com amigos é a amizade. Estranhei porque acho-o um tema dificil, por ser um conceito, um comportamento tão "wide open". Embora eu seja das pessoas que + cultiva as amizades q tem e almeja sempre por novas. A ti JB, desejo que continues a acreditar nas pessoas. Se amigas, melhor ainda.

Anónimo disse...

Gostei muito João.

Um abraço,

Natasha

Anónimo disse...

Adorei! Posso utilizar para fins educativos?

Ivan Santos disse...

...como te entendo JB, como te entendo!
sima ta fladu: "sprit d'luz ka ta infrontá"

já dizia Bob Marley:
"Your worst enemy could be your best friend
And your best friend your worst enemy

Some will eat and drink with you
Then behind them su-su 'pon you
Only your friend know your secrets
So only he could reveal it
And who the cap fit, let them wear it"

Abraço...fraterno e carinhoso, sem palmadinhas nas costas ;-)!!!

Anónimo disse...

Olá João, tudo bem?
A internet permitiu-nos conectar de uma forma fácil e rápida com aqueles que estão longe, mas a tela do computador é como um escudo, que nos protege de tudo e todos, e nos faz assim sentir que podemos fazer tudo e dizer tudo. Conseguimos ser mais emotivos e expressar os nossos sentimentos mais nobres de uma forma mais directa, mas também nos sentimos muito mais tentados a criticar e "mandar bocas" quando assim o queremos. Esquecemo-nos que o virtual é na verdade real. Esquecemo-nos que do outro lado da tela existe uma pessoa, que devemos ser mais compreensivas e tratá-la com respeito e consideração. Como o faríamos se ela estivesse a nossa frente.
É por isso que se vê muitas críticas e ofensas nos blogues e no asemanaonline por exemplo. Muitas vezes as pessoas chegam ao absurdo de desrespeitar os dirigentes e representantes desta nação. Parece que a falta de educação não conta se for virtual e com o capuz do anonimato.
Eu fiz um acordo comigo mesma, de não fazer comentários carregados de críticas e desaprovações à ninguém. Eu sei que se o fizer estarei protegida dos olhos do mundo pelo anonimato, mas... E o que é que me protege dos meus olhos? Não quero ser a figura educada só para os outros. Quero sê-la principalmente para mim mesma.
E.

Kuskas disse...

JB
Ha 5 anos fiquei completamente desiludida com algumas "amizades" e quase perdi a fé nesse sentimento mais lindo que existe que é AMIZADE.
Prefiro continuar a ser uma otimista, que acrredita no melhor das pessoas até me provarem o contrario.

Adorei o texto e vou guarda-lo para ler de vez enquando.
Um abraço e continue assim: sempre otimista.