Crónica desaforada

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Um Dragão na garagem


1. Há alguns anos atrás ouvi uma história que me ficou gravada na memória. Esse pequeno conto foi-me relatado a propósito dos artistas «com aspas», ou dos «pseudo criadores», que não escolhem solo ou pátria para germinar: é a história do Dragão na garagem.

2. Dois amigos conversam um com o outro, e um deles tenta convencer o parceiro que tem instalado na sua garagem pessoal um imponente Dragão. Como é evidente, perante este acontecimento insólito, a reacção do interlocutor só podia ser de incredulidade. «Como é possível isso? Os Dragões não existem, e se existissem, com certeza que o último lugar que escolheriam para viver seria numa garagem escura e desagradável, ainda por cima numa cidade como esta. Não acredito nisso!»

3. Como nestas coisas o melhor é ver para crer, o indivíduo convidou o seu amigo a visitar a tal garagem para comprovar com os seus próprios olhos a estranha história do Dragão. Uma vez chegados lá, o amigo olhou e tornou a olhar e não viu nada. «Não vejo aqui nenhum Dragão, meu caro». A resposta não tardou: «Claro que não o vês. Nem poderias vê-lo, porque este Dragão é invisível

4. Desconfiado, o amigo ripostou: «Muito bem, se ele é invisível, arranja um pouco de tinta num spray, a gente espalha por aí, e se de facto o teu Dragão estiver dentro desta garagem, vamos poder localizá-lo. Assim poderemos tocar nele, sentir a sua forma pelo tacto.» Mais uma vez a resposta rápida: «Isso não vai ser possível, porque este Dragão que aqui está é incorpóreo, ou seja, não é constituído por matéria.»

5. Cada vez mais desconfiado, o sujeito volta a tentar: «Muito bem, se ele é invisível e incorpóreo, com certeza que poderemos localizá-lo pelo cheiro. Uma criatura tão grande e medonha como essa, tem que emitir algum odor que possamos identificar!» Sorridente e cada vez mais confiante, o dono da garagem não perde tempo para afirmar que «este Dragão, infelizmente, também não tem cheiro

6. Então aí o amigo dá a sua estocada final: «meu caro, qualquer coisa, viva ou não viva, animal ou vegetal, que é ao mesmo tempo, invisível, incorpórea e inodora, é uma coisa que não existe! O teu Dragão de garagem só existe na tua imaginação

7. O que representa esta história? No contexto em que me foi contada, tinha directamente a ver com casos de auto intitulados dramaturgos e escritores que o eram, apesar de nunca na vida terem publicado qualquer obra, ou escrito algo que se parecesse com uma peça que se pudesse reclamar a sua autoria. Nem sequer era certo se, de facto, já tinham escrito uma linha que fosse.

8. Tal como o dono da garagem, a resposta também é pronta: «eu tenho coisas escritas, só que estão numa gaveta; ainda não as mostrei a ninguém porque são projectos literários que ainda estão por amadurecer.» Faz-se aqui uma pausa teatral, e o indivíduo remata: «mas isso não me tira o direito de me considerar um escritor!» Com direito a convite especial para lançamento de livros ou para estreias de peças teatrais em noites de gala. As peças, ou as obras, existem, só que ainda ninguém as viu!

9. Esta tendência com que facilmente algumas personagens caricatas se transformam aos olhos da sociedade em artistas é de bradar aos céus, e é tanto mais visível quanto mais pequena for a comunidade onde estivermos inseridos. Em Cabo Verde, onde se cultiva a basofaria como um produto nacional de primeira necessidade, a tendência de vermos transformados em artistas indivíduos que nunca na vida fizeram nada que justificasse tal título é também aqui maior do que por ventura desejaríamos.

10. O termo artista está de tal forma banalizado entre nós que tudo parece ter perdido o sentido. Muitas vezes, o que é mais grave, é a própria sociedade que inventa os seus Dragões, inventa os seus artistas, nomeia-os e espeta-os nas páginas da imprensa escrita, na rádio ou na televisão, com benevolência e irresponsabilidade. Aí, quando a criatura, mesmo que inocente, é apaparicada desta forma, está logo o caldo entornado, porque depois de atingido o poleiro, já ninguém o tira de lá.

11. Coloca-se tudo no mesmo saco da classe artística e intelectual cabo-verdiana, onde palavras como formação, exigência, profissionalismo, história, currículo e talento têm pouca ou nenhuma importância. Também aqui em Cabo Verde, seja nas artes cénicas, na literatura, na música ou nas artes plásticas, temos espalhados Dragões que por serem invisíveis, incorpóreos e inodoros, não tem existência real, mas pavoneiam-se com o rei na barriga, dando lições a meio mundo, intitulando-se de artistas que estão apenas a dar «o seu contributo para o desenvolvimento sustentado da nossa cultura!»

12. Foi curioso, pois, observar as reacções quando um indivíduo sem papas na língua como Abraão Vicente, a quem dedico este desaforo, escreveu que «em Cabo Verde não temos um pensamento voltado para a arte». Foi vê-los, aos Dragões, saírem esbaforidos das suas garagens particulares, a clamarem por uma existência repentina!

13. Cá por mim, continuo a pensar que a obra faz o indivíduo, e aprendi desde os primeiros tempos de escola, que embora variando no tempo, conforme a espécie considerada e o local onde se encontra, o que amadurece demais acaba por apodrecer.


Mindelo, 30 de Janeiro de 2008






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12 comentários:

Kamia disse...

Esta história assentaria-me que nem uma luva não fosse o facto de eu sempre ter respondido educada e sinceramente a quem quer que me tenha chamado escritora ou artista que não o era e desbragadamente (quase que soltando um palavrão) a quem tentou me chamar de intelectual. Coisas nossas...Alguem solta um assobio e já é... Nat King Cole.

Mas, por outro lado, creio que há espaço para que aqueles de nós que não somos escritores/artistas/intelectuais nos expressemos

JonDays disse...

Oh João!!!! Bo que sabe!!! Adorei a tua história, mas queria deixar bem claro que eu tenho um dragão na minha cozinha!! Ele é verde e amarelo, com pintas pretas aqui e ali... quando está zangado lança fogo, e quando está triste chora umas lágrimas grossas e redondas...
Enfim, quem não tem seu dragãozinho que atire a primeira pedra!! FCP !!! FCP!!! hehehehe

Unknown disse...

Kamia, como é evidente, a questao nao é de fechar portas a ninguém, muito menos a novos talentos. A questao, e tu entendeste bem, porque reages mal quando te chamam «escritora»... Mas penso que entendes o porque deste «desaforo». Abraço!

Unknown disse...

Ah ah ah Jon, agora fizeste-me rir! Mas o teu dragão não te dá para te armares em artista. Além disso, se formos por aí, eu tenho um dragão no peito! Abraço

Anónimo disse...

Adorei o desaforo!! Não que eu tenha alguma coisa contra os "Dragões" que existem em CV, mas sim porque do que adianta tanta basofaria com aquilo que está a mofar na gaveta se não se tem coragem de "dar a mão a palmatória"? Ainda por cima ficam colhendo os louros de títulos inexistentes, quando há os verdadeiros artistas que mostram o que valem, enfrentam o mundo artístico(k em CV dispensa comentários) e nem sequer têm o devido reconhecimento.

Unknown disse...

É isso, Sisi... obirgado pelo comentário. Abraço

Anónimo disse...

Um dragão para sair da garagem tem que ser domesticado. E isso é obra de muito trabalho e muita paciência. Cada um é livre de o fazer ou não. Alguns até morrem antes de terminar a obra. Porquê colar uma etiqueta na testa de cada um? (isso é coisa dos midias) Sem ofensa... ;o)

Anónimo disse...

Hahahaha.Quase bo tava te alê nha mente ish dia nem João?
Há muito que falo nisso com os meus amigos e colegas de trabalho.
Um exemplo de um dragão são "Compositores" que na vida só fizeram uma música digna desse nome e todos os anos arrebatam prémios. E quando não os conseguem, desatam a correr com protestos e abaixo assinados.
Essa basofaria que temos em bajular certos "alvos" escolhidos por elites pseudo-intelectuais é um problema nacional.
Há muito talento náo reconhecido por esse Cabo Verde fora.
Os blogs são uma forma de dar vez e voz a muitos que de outra forma ficariam silenciados. Força João - The Dragon Hunter.

P.S- Já viste o filme "Bewolf"?

Unknown disse...

Moreia, o que não existe não pode ser domesticado... primeiro é preciso fazer com que o Dragão exista mesmo... Abraço (mas entendi, e até concordo com a tua ideia)

Makna: pois, temos dragões em todas as áreas... agora, ka bo pertuntam se j'm oyá ess ou akel filme. Dondé???? Li ka tem cinema, porra!!!! Abraço

Unknown disse...

bom desaforo, mt bem aplicado. Os artistas costumavam ser despretensiosos. Hj em dia é que há uma pressa de fazer comércio em vez da busca pela criação. Falta critica, se houvesse essa faceta especializada do jornalismo, mts dragões ficavam de bico chamuscado.

Unknown disse...

Pois é, Tide, a critica é aqui uma palavra chave. E outros que tem sido utilizados na discussão que promoves - e bem - lá no teu estabelecimento: conceptualização, formação, exigencia, etc. Enfim, isto está tudo ligado, não é?

Unknown disse...

é um sistema Jon e tudo se relaciona com tudo afinal.

queria acrescentar que quando a critica sabe se posicionar, a qualidade sobressaí e os que produzem nesse nível são catapultados para longe de mediocridade. A descoberta de novos talentos é outra área onde a critica funciona como um elemento de impulso.

Bali!