Um Café com a Indústria Cultural

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Sempre que em encontros, mesas redondas, debates sobre o desenvolvimento, etc, se fala de Cultura, coloca-se esta ao serviço de alguém ou de alguma coisa, quando deveria ser precisamente ao contrário. No discurso muitas vezes proferido fala-se de Turismo Cultural ou de Indústria da Cultura, como se esta só fizesse sentido se ao serviço de outras componentes do desenvolvimento. O termo «vender Cultura» é utilizado com a maior das descontrações. Como se a Cultura, por si só, não fosse algo que mereça ser preservado, motivado, incentivado colocando a criação artística e a valorização cultural no patamar superior das preocupações de uma Nação que se quer afirmar.

Por isso, plageio aqui Joaquim Jorge Veiguinha, professor de Teoria Social no Instituto Superior de Economia de Lisboa, publicado na revista “Escritos”, em 1998.

Então cá vai:

«Apesar da sua sofisticação tecnológica, a indústria cultural oferece-nos uma ficção pobre: uma ficção que se limita a reproduzir a realidade, sem qualquer distanciamento, e que, simultaneamente, é uma evasão, uma fuga da própria realidade. Esta dupla característica, que encontramos nos produtos em série do audiovisual e também na maior parte dos subprodutos cinematográficos consumidos no mercado por um público sonâmbulo, impede desde logo a liberdade da imaginação e sensibilidade do espectador e não estimula a sua capacidade crítica e reflexiva. O cliente da Indústria Cultural deve pensar e imaginar o menos possível. Apenas se lhe exige intuição rápida para que não perca o rápido encadeamento das imagens. Já que o próprio texto, os próprios diálogos são reduzidos à sua expressão mais elementar. A capacidade de atenção do espectador converte-se na capacidade de atenção de uma mosca: a única liberdade que lhe resta é a de zapar de um canal para o outro para encontrar sempre o mesmo tema glosado de modo diferente.

Os produtos da indústria cultural visam apenas a distracção, a recriação do espectador. Neste sentido, constituem o mero prolongamento do processo de produção capitalista que se estendeu de forma a abranger o próprio lazer. «Lazer, mercado do futuro», poderia ser um slogan publicitário de sucesso no actual contexto económico e social. A mercadoria vendida em série no mercado do lazer, aos diversos públicos segmentados por idades, rendimento e categorias sociais, é uma espécie de narcótico que constitui uma fuga da realidade e simultaneamente um abandono de qualquer tentativa de confronto com esta. Vive-se em pleno reino da consciência feliz, em harmonia com ela própria e com o sistema que a diverte e recria. Um circo composto por uma enxurrada de imagens e videoclips que acaba por nos oferecer como horizonte precisamente a própria vida quotidiana rotineira de que prometia libertar-nos. A indústria cultural trai, portanto, incessantemente a própria promessa: visa apenas a reprodução da realidade existente, satisfazer os índices de audiência, persuadir o individuo de que qualquer inconformismo é deslocado. (...)

A memória, componente essencial da consciência e do imaginário do individuo e das sociedades, não existe para a indústria cultural. O seu elemento é um eterno presente em que apenas o imediato, a imagem que se desactualiza no próprio momento em que é emitida, a moda e o capricho inconstantes que navegam ao sabor das decisões circunstanciais dos produtores, têm relevância. Mas a ausência de memória é, ao mesmo tempo, um esquecimento da dimensão histórica e colectiva da vida social. O sonho da indústria cultural é precisamente o sonho do neoliberalismo que constitui o seu sistema de referência ou a sua matriz inspiradora: criar uma sociedade de indivíduos isolados uns dos outros, mas ligados, simultaneamente, por redes informáticas, consumidores dos mesmos produtos audiovisuais, frequentadores dos mesmos espectáculos virtuais na placidez homogénea dos seus lares, assinantes das mesmas revistas e fanáticos do acto de zapar. De resto, este acto, incessantemente repetido, tenderá a tornar-se cada vez mais um mero simulacro do confronto entre o individuo e a realidade que existia anteriormente à civilização audiovisual ou à famigerada sociedade de informação.

Quem não se confronta não resiste, quem não resiste aceita passivamente integrar-se. Mas isso só é possível porque o próprio lazer dos indivíduos isolados é apenas um prolongamento das relações de produção existentes: a ausência de confronto, o enfraquecimento da consciência relativamente à heterogeneidade da realidade é, sobretudo, o resultado de uma alteração radical dos modos de percepção que, no passado, eram determinados em última instância pelo trabalho colectivo. Hoje, pelo contrário. Avança e difunde-se cada vez mais o tele-trabalho que, para além de permitir o desenvolvimento da forma mais sofisticada de controlo – o controlo à distância – priva cada vez mais o individuo do contacto com os outros, afastando-o cada vez mais daquela esfera «antiga» onde aprendia simultaneamente a ser solidário, a lutar pelos seus direitos e pelos seus companheiros, numa palavra, onde aprendia a resistir à implantação da consciência feliz e resignada em harmonia com a realidade existente.»


Imagem: pintura de Kandinsky - composition 8640





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1 comentário:

Anónimo disse...

Primeiramente, queria dar-lhe os parabéns pelo artigo, está muito bom.Se me permite colocar um bocadinho de pó de café no seu coador para deixá-lo mais margoso, na minha opinião,todos os avanços tecnológicos na indústria cultural,para além de agravar o isolamento dos indivíduos ,está a fazer perder o significado da palavra cultura, do ponto de vista de qualquer das ciências sociais, e dando lugar a chamada cultura de massa. Este tipo de cultura, ao meu ver, apenas rouba a identidade de cada povo, submetendo-os à uma cultura comum e pobre e é por isso que, como referiste, não podemos contentar em ser apenas distraídos.