Crónica Desaforada

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Os dois lados do Silêncio


1. Qualquer pessoa familiarizada com o mundo do teatro sabe o quanto o silêncio é um elemento fundamental. Não o silêncio imposto mas o que resulta de um tácito e prévio acordo entre quem faz e quem vê. O silêncio na arte cénica é precioso porque permite uma leitura. Ou melhor, várias. Vai-se construindo, ao longo de cada espectáculo, uma espécie de partitura do silêncio, onde este se manifesta a vários níveis. Na leitura desta partitura podemos sentir o pulsar de uma peça porque o silêncio não é sempre o mesmo. Há um silêncio atento, em que a plateia inteira está respirando junto com as personagens; há o silêncio desatento e desinteressado que promove, necessariamente, um outro tipo de energia; há ainda o que eu chamaria de silêncio ruidoso, aquele que acaba indubitavelmente com o público a ver as horas no telemóvel, a falar com o colega do lado ou a abrir o programa para disfarçar o tédio. 

2. Ao falar sobre o estudo aprofundado da Tradição – compreendendo este termo como um determinado número de doutrinas e práticas religiosas ou morais transmitidas de século a século pelo discurso oral ou pelo exemplo –, o físico Nicolescu aponta que esta sempre nos ensinou que devemos criar no nosso interior uma sensação de vazio, um espaço para silêncio a fim de permitir que haja um desenvolvimento total das potencialidades para conpreensão da realidade. Não é muito diferente no teatro, talvez a forma de expressão artística que mais vai beber aos costumes tradicionais naquilo que eles têm de cerimonial e mítico. Por isso, o silêncio em teatro é fundamental sem com isto querer dizer que o publico deva permanecer calado. Não é assim. Não tem público pior do que aquele que não se manifesta, querendo-o. Que trava o riso, o espanto ou as palmas. Também isso faz parte de uma comunicação que se quer e exige no acto solene da apresentação teatral. E é aí que o silêncio é mais válido: quando comunica e quer dizer alguma coisa.

3. A sensação de um bom silêncio é a melhor dádiva que podemos ter em teatro. Nos meus espectáculos gosto muito de ficar no lugar dos técnicos, que geralmente fica atrás da plateia, pois essa é um local que nos dá, por um lado, uma visão privilegiada e, por outro, nos permite ouvir e sentir a plateia com em nenhum outro lugar de um auditório. Quantas vezes me apanhei de ouvido apontado para os espectadores a saborear o silêncio conquistado por uma determinada cena! Quantas vezes já me voltei para colegas que comigo estão naquele lugar e digo-lhes bem baixinho (até para não estragar o momento) “ouve, ouve só este silêncio!” E fico ali, por vezes de braços abertos como quem saboreia uma doce vitória, mergulhado naquele silêncio atento, participativo, cúmplice. Uma peça de teatro que consegue em determinada altura conquistar um silêncio destes torna-se, certamente, um triunfo criativo. Mais ainda nos tempos de hoje, onde o ruído e a cacofonia insuportável dominam, de forma quase pornográfica, o nosso quotidiano.

4. Por outro lado, temos os tais silêncios que nos são impostos. Por vergonha, por medo, por conveniência, por hipocrisia, por cobardia, até por cinismo. Estes são os silêncios que o teatro deve combater. Escondemos realidades sujas debaixo dos nossos tapetes e é função da arte torná-las públicas. A humanização artística passa pelo cântico da beleza e da poesia mas também pela expiação dos nossos maiores demónios. Deve tocar pelo riso e pela ironia, mas também pelo confronto com realidades com as quais não sabemos ou não podemos lidar. E há silêncios que são ensurdecedores. O mais tremendo de todos é, sem dúvida nenhuma, aquele que esconde o abuso sexual de menores, de crianças. Esse é um silêncio que me dá vómitos porque não consigo conceber que algum ser humano se possa calar sabendo ou testemunhando, directa ou indirectamente, alguma história macabra que envolva o abuso sexual de alguma criança. Estamos cansados de saber que uma enorme percentagem destes casos acontecem com pessoas muito próximas das crianças. Com pais, padrastos, irmãos, primos, amigos dos pais, professores, vizinhos. E todos os outros, não sabendo, desconfiam. E sabendo, calam. E calando, tornam-se cúmplices de um dos mais hediondos crimes que a humanidade conhece ou é capaz de produzir. 

5. Por isso fazemos peças como “Teorema do Silêncio”, que estreia esta semana. Numa tentativa que tem tanto de arrebatada quanto de revoltada colocamos em palco um dos maiores tabus. Que é vergonhoso precisamente por ser considerado tabu. O silêncio à volta do abuso sexual de crianças não pode continuar. Este não pode ser um assunto tabu. Tem que ser um assunto sempre presente. Tem que estar no lugar mais destacado das denúncias. Tem que ter uma abordagem mais implacável da justiça. Promovendo uma sociedade que seja mais alerta, solidária e lutadora. Uma sociedade menos permissiva, cúmplice e obscena que é aquela em que hoje somos obrigados a viver. No fundo, procuramos através desta peça cumprir uma das mais nobres funções do teatro: ser catarse e caleidoscópio da natureza humana. Porque só conhecendo o mal, poderemos combater o mal.     

Mindelo, 24 de Maio de 2012

Ilustração de Chiharu Shiota





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1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente texto que incita à reflexão e surpreende à medida que se prossegue com a leitura.