Crónica Desaforada

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Ensaio sobre a cegueira

1. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Nesta última semana, uma das aulas do curso de teatro foi dedicada a ver o excelente documentário de Rui Simões a propósito da encenação pela Companhia de Teatro O Bando, do romance Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Neste filme somos confrontados com todo o processo de criação, extremamente complexo e exigente, principalmente para os actores, já que a peça implicou uma construção de personagem muito sustentada num intenso trabalho corporal, numa monumental cenografia que obrigava os intérpretes a um esforço adicional pelo simples facto de se deslocarem em cena e pela duração de toda a encenação, com cerca de três horas. Uma das componentes mais interessantes do filme é, sem dúvida, a entrevista ao próprio autor José Saramago que, com a sua habitual lucidez e inteligência, diz coisas que possivelmente já sentimos ou pensamos mas que nunca fomos capazes de exprimir por palavras nossas. Uma delas é esse mais do que óbvio mau uso que damos à nossa capacidade de observação do mundo que nos circunda, que nos tem transformado com o decorrer do tempo em cegos visuais.

2.É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.” O livro, tal como a peça adaptada, é uma profunda metáfora sobre a cegueira actual que se tem generalizado tal qual uma praga maldita e ameaça acabar definitivamente com a nossa capacidade de criticar, julgar, pensar, reflectir e, em última instância, amar. É, como é habitual neste autor, uma abordagem desarmante da natureza humana embora há quem defenda que Saramago põe a nu o nosso pior para que, por força do contraste, possamos ter a consciência do melhor. Quem sabe se colocados cara a cara com a crueldade não estaremos um dia mais habilitados para acordar deste sonolento deixa andar com que encaramos o nosso quotidiano. A violência aumenta, os preços dos combustíveis não param de subir, a nossa juventude está alienada, o sistema viciado, o enriquecimento ilícito menosprezado, o lixo espalhado, o discurso politico empobrecido, a capacidade de cada um pensar pelas suas próprias cabeças reduzido ao quase nada. Daí que aceitemos passivamente tudo o que nos é imposto pelos diferentes poderes com os quais somos confrontados durante a vida: o Governo central, as autarquias, os patrões, os professores e, em casa, os nossos educadores. Continuando assim, corremos o risco, como indivíduos e como Nação, de acabar como escreve Saramago, metade indiferença, metade ruindade, quando percebermos que a energia que gastamos a maldizer e a destruir é muitíssimo superior que aquela que investimos para instruir ou criar, seja riqueza, conhecimento ou benfeitoria.

3.O medo cega. São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.” Estamos numa época em que o medo impera: o medo de falar, o medo de dizer o que pensamos, o medo de sair à rua, o medo de um atentado, o medo de que a nossa filha menor apareça grávida em casa, o medo de ouvir, o medo de quem é diferente, o medo de ousar, o medo de despir, o medo de experimentar, o medo de tocar, seja nas feridas seja nas almas. É o pior dos medos porque nos domina sem luta, nos anestesia sem picada, nos gela até aos ossos, nos impede de movimentar contra a corrente enfadonha das grandes maiorias artificialmente construídas pelos meios de informação de massa. O perigo é maior para quem se quer artista pelo fazer. Porque a arte não se compadece com monotonia, com carreirismo ou com plágios mais ou menos descarados. Sempre acreditei, como disse o catalão Antoni Tapies, um dos maiores artistas contemporâneos (recentemente falecido), que a forma artística que não é capaz de provocar o desconcerto no espírito do espectador e não o obriga a mudar a forma de pensar, não é actual. É neste sentido, nesta linha de pensamento, que tristemente constato estarmos a caminhar de frente para trás, a passos largos para uma nova era de escuridão ou de brancura total, porque se há algo que aprendemos sobre esta cegueira é que esta é branca e não negra. Como uma folha de papel sem que ninguém lhe tenha pegado para nela escrever coisa alguma. É apenas uma folha de papel. Branca e mais nada. Se nela colocarmos um poema de Arménio, Neruda ou Pessoa, por exemplo, passa a ter um valor proporcional à forma como o poema nos tocou. O pior, parece-me, é que uma folha com um poema tenha o mesmo valor para tanta gente hoje em dia que uma folha que não tenha absolutamente nada. E no dia em que a poesia deixar de fazer sentido, a besta que há em nós vencerá a batalha que colocará a nossa humanidade definitivamente confinada numa urna triste e dourada.

4.Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.” Quando uma plateia reage com o riso a uma cena de violação, onde mulheres são estropiadas de forma inapelável, procuro não julgar mas antes entender a razão de ser para tal reacção. Pode ser um riso nervoso de incómodo, pode ser um riso perverso de quem se deixou embrenhar pela crueldade alheia. Pode ser também porque estamos cegos, apesar de ver. Porque somos como as personagens de Saramago e estamos fechados num enorme manicómio onde impera a lei do mais forte, a maledicência, a desumanidade, a violência, mesmo aquela que pensávamos nunca ser possível existir. E cegos caminhamos pelos dias, pelas ruas, pelos bares, pelas salas de aula, pelas casas, sem qualquer contestação, sem nenhuma capacidade de argumentação critica, comemos e calamos ou nem comemos e mesmo assim continuamos calados. Estamos hipnotizados pelo ritmo das milhares de imagens por segundo com que somos bombardeados e entramos a passos largos para o grosso bando dos cegos da alvura. Mas tal como em Saramago, há sempre no final uma porta para a esperança que ironicamente designamos de luz ao fundo do túnel. Neste caso particular continuo a defender que essa luz, essa esperança de que um dia possamos olhar com olhos de ver, está sustentada na arte. Sim, na arte, essa bóia salva-vidas de uma humanidade prestes a naufragar.

Mindelo, 16 de Fevereiro de 2012 (crónica publicada no jornal A Nação)




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1 comentário:

Anónimo disse...

JB, obrigada por escreveres coisas assim. bjs