Declaração Cafeana

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A pior forma de encarar determinadas realidades é pensar que certos males só vão acontecer aos outros. Isso continua patente, por exemplo, na forma como encaramos a prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis, como não nos preocupamos em poupar energia, ou como continuamos a apontar o dedo aos problemas do vizinho. Estamos perante o conhecido - e quase tradicional - meter a cabeça na areia ou tapar o sol com uma peneira, expressões que combinam com as características naturais e geográficas do arquipélago cabo-verdiano, já que. como sabemos, areia e Sol são elementos que nunca faltaram por estas paragens.

E tem dias em que tudo isto mete medo. Continuamos a olhar para S. Vicente duma forma superficial, redutora, escolhendo o ângulo que melhor serve os nossos interesses ou a empatia que temos pelo lugar. Costuma-se dizer que o amor é cego, mas neste caso não é apenas cego, é perigoso. Amar a cidade e a ilha requer abrir o olho para a realidade que nos cerca e não sair cantando alegremente que Soncent é sab pa cagá, mesmo que essa "melodia popular" já tenha sido utilizada como exemplo na rádio por um convidado ilustre, como uma música característica da ilha do Porto Grande (ao que isto chegou!).

Na passada semana, uma senhora e uma jovem, mãe e filha, foram brutalmente baleadas, à porta da residência e dentro da própria viatura, para onde se dirigiram, numa fuga desesperada. Foram disparados quatro tiros, com uma arma de guerra. Todos eles acertaram nas vítimas, que só escaparam por milagre, embora ainda estejam no hospital em estado considerado grave. Foi uma execução. Falhada, mas foi, porque quem disparou, atirou para matar. Tudo isto aconteceu em Alto de S. Nicolau, onde vivi recentemente durante alguns anos. Numa zona movimentada. Por onde eu passava todos os dias, com as minhas filhas. Se isto não é suficiente para reflectirmos sobre o estado a que isto chegou, abrir os olhos e não cruzar os ombros, à boa maneira mindelense, e dizer que estas coisas "só acontecem na Praia", não sei o que mais será preciso.

Não dar atenção aos sintomas é o primeiro e definitivo passo para definhar de uma doença terminal. Falar que S. Vicente está falido e ver a fila monumental de gente à porta do Ponta d'Agua todos os Sábados, pronta para pagar por mais uma valente paródia de fim-de-semana, não combina. Há muita coisa que não bate certo nesta história. Mais: afirmar, nos discursos políticos, que "S. Vicente tem tudo para dar certo", tem o mesmo peso e a mesma redundância, que os cânticos do povo no já célebre Sab pa Cagá. 

Um dia, acordaremos para esta triste realidade e por amor à minha ilha e à minha cidade, só espero que esse despertar não chegue tarde demais.



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3 comentários:

David disse...

Não se pode queixar apenas dos soldados que vão cumprir as ordens dos generais. Esses ajustes de contas são feitos ( materialmente falando) pela raia-miúda , o problema é de quem os manda executar. Falando claro: em CV, ninguém se importa em ser amigo de senhor ou senhora que todos sabem ganhar o seu dinheiro, não nos seus negócios de fachada mas sim a vender droga e afins ( não há qualquer censura social!!!), mas depois queixam-se da pequena criminalidade e dos soldados desses generais ( traficantes, para ser claro) que vão “apenas” cumprir ordens. Alguma coerência...!

Unknown disse...

Creio que é dos livros a conclusão de que é nos paises de economia oficial débil que florescem as economias paralelas...

Adriano Miranda Lima disse...

Esta é uma afloração da realidade que temos vindo a denunciar. Os que acham exagerado o tom e o modo de um certo discurso pouco optimista de alguns talvez sejam os que preferem "meter a cabeça na areia" ou "tapar o sol com uma peneira", como sentenciou, e muito bem, o autor do texto. Fiquei sem saber quem é o autor do texto, porque não está explícito, mas julgo que é o editor do blogue "Café Margoso", que, neste caso, merece as minhas felicitações.
Temos vindo a denunciar o retrocesso económico e social e a ausência de uma política compatível com as justas aspirações do povo da nossa ilha. Mas quando nos deparamos com estes casos de criminalidade violenta de alto expoente, típicos de uma sociedade que perdeu o rei e o roque, então é caso para pensarmos que a situação é séria e é preciso agir em toda a escala. Mas se, por comparação estatística, formos propensos a julgar que o que se passou é, afinal de contas, semelhante ao que ocorre nas actuais sociedades, relativizando-se assim a sua importância, impor-nos-á então, e obrigatoriamente, uma ponderação correctiva, a saber. A situação tem de ser vista com um olhar prospectivo e numa perspectiva de proporcionalidade, valorizando necessariamente a relação entre pequenez do meio e natureza e dimensão do fenómeno criminal que nele ocorre. Posto isto, manda a prudência política que se avalie com urgência a capacidade dos meios de prevenção e de repressão, quer em termos humanos quer instrumentais, ao mesmo tempo que se impõe uma rigorosa radiografia ao actual tecido social no sentido de detectar as células malignas que o contaminam. E adequar as políticas à realidade da situação.

Um abraço

Adriano Miranda Lima