Crónica Desaforada

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Os Amadoristas

1. Quando participei no último Fórum Nacional da Cultura, em 2008, na cidade da Praia, a convite do então Ministro Manuel Veiga, fi-lo com grande empenho e entusiasmo. Participei dos trabalhos, preparei uma comunicação, fiz parte de um dos grupos de trabalho, escrevi crónicas calorosas sobre o sucedido. Durante dois dias, a Biblioteca Nacional fervilhava de gente de todas áreas criativas, desde a literatura, o teatro, a música, as artes plásticas, a fotografia, o design e o audio-visual. Do encontro saíram várias intervenções entusiásticas, muitos dados para se trabalhar, dezenas de recomendações concretas e inúmeras promessas. Lançaram-se novos paradigmas para a cultura, falou-se dos diamantes por lapidar e prometeu-se, com toda a pompa, um Plano Nacional para a Cultura que nasceria inevitavelmente depois de um parto natural nunca superior a seis meses de duração. Nada aconteceu e eu, decepcionado, jurei que nunca mais me apanhariam numa dessas.

2. Ora, acontece que a nova equipa do Ministro da Cultura Mário Lúcio Sousa, cuja ambição em termos de objectivos de implementação de medidas, reveladas nas últimas e públicas intervenções, combina com a qualidade da equipa que se juntou à sua volta, com muitas pessoas que entendem do assunto, que são também eles artistas, que viveram e sofreram na pele muitos dos constrangimentos que muitos de nós vivemos e sofremos no dia-a-dia, ora acontece, dizia eu, que a nova equipa deste ambicioso Ministério da Cultura, se prepara para organizar um novo Fórum Nacional da Cultura, na ilha de S. Nicolau. Tremi com a ideia. Pensei “outra vez?”. E de novo, com os meus botões, “para quê?”. Mas finalmente, veio a conclusão lógica para estes devaneios, “Porque não?”. Se for para reflectir e ouvir os artistas, vamos a isso! Só peço é que depois, com o entusiasmo que tais encontros sempre acarretam, não venham com promessas que não possam concretizar.

3. Queria pois, a partir desta simbólica e humilde plataforma dar uma contribuição. Para já, é preciso definir, e o quanto antes, sobre essa coisa que é a condição do artista em Cabo Verde. Quem é artista e porquê? O que o define? Que percurso, na formação, informal ou académica, ou na actividade concreta no terreno, é necessário para se conseguir aceder a esse estatuto? Essa definição do Estatuto do Artista é urgente e não pode nem deve, do meu ponto de vista, passar pela questão da profissionalização, pelo menos para já. Não andarei muito longe da verdade se disser que mais de 90% das pessoas que trabalham na criação artística não o fazem de forma profisisonal, ou seja, não tiram dessa actividade rendimento suficiente que permita o seu sustento e o de quantos dependem dele. E isto contando também a vertente musical, que domina em larga escala, o leque da criação cultural cabo-verdiana.

4. Muitos destes artistas criam e desenvolvem a sua actividade porque tem um emprego que lhes permite retirar o sustento que a arte nunca lhes deu. Mas nem por isso deixaram de dar a sua contribuição. O ideal seria que todos conseguissem se profissionalizar, mas permite o nosso mercado que isso aconteça? A internacionalização da cultura cabo-verdiana vai, um dia, contribuir para que tal meta possa ser atingida por alguns? Parece-me consensual que hoje (ainda) não permite. Cesária Évora é excepção, está longe de ser regra. E daí que se chegue à tão temida palavra “amador”, que vem quase sempre carregada de uma nuvem negra, com uma carga perjorativa, um assombro de desconfiança. Nada mais enganador. Amador é aquele que ama o que faz. Que não deixa de fazer, mesmo que saiba que não o faz por dinheiro ou outra qualquer outra razão que não seja o prazer que retira do processo de criação, seja no momento da concepção seja no momento da partilha com o seu público. É um amante por natureza. Ama, de paixão, e entrega-se. Um artista amador é um amadorista. A melhor classe de artistas que pode existir no mundo. A que mais existe em Cabo Verde.

5. Sendo a grande maioria dos nossos artistas amadores, e portanto com empregos que lhe garantem um sustento que a arte ou a criação nunca conseguirão assegurar, essa questão do Estatuto do Artista atinge uma importância nuclear. Por várias razões, sendo que as mais óbvias e conhecidas são duas: licenças laborais para a actividade artística e a conceção de vistos para apresentações internacionais. Uma e outra implicam autênticas odisseias homéricas que envolvem burocracias, tempo perdido, dinheiro e energia gastos e, quantas vezes, desistências de participações em eventos por não se ter conseguido a indispensável autorização ou o selo mágico no passaporte. É urgente, por um lado, chegar a algum acordo com as empresas e os próprios organismos do Estado, sobre o número de horas (ou dias) que um artista, com um estatuto reconhecido pelo Ministério da Cultura, pode, sem obstáculos burocráticos, usar de forma justificada no exercício dessa actividade. É urgente, ainda, no âmbito dessa misteriosa organização internacional chamada CPLP, se consiga chegar a um acordo para a criação de um Passaporte do Artista, que permita a circulação de toda essa gente entre os países de língua portuguesa, contribuindo assim para uma verdadeira e igualitária possibilidade de intercâmbio e trocas culturais.

Crónica publicada no jornal A Nação



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