Crónica Desaforada

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Rios e Solano

1.
 – Onde estamos?
- Num teatro.
- Tens a certeza?
- Ou alguma coisa parecida.
- Isto é o palco?
- É.
- Aquilo é o público?
- É.
- Aquilo?
- Achas estranho?
- Diferente.
- Diferente?
- Outra vez.

2. Estas são as primeiras falas de uma peça emblemática do dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra. Intitulada “Ñaque, sobre piolhos e actores” estamos perante aquele que é, muito provavelmente, um dos textos dramáticos dos últimos cem anos que melhor consegue captar a essência e a verdadeira natureza da arte cénica. Com muito humor, a peça fala do papel do actor na sociedade através dos tempos e do sentido de fazer-se teatro nos dias de hoje. Encenada um pouco por todo o mundo, compreende-se bem porque é que este é um texto que atrai tanto os amantes do teatro. Sendo o teatro a arte onde o confronto entre o objecto artístico e o público só faz sentido ao vivo, é difícil explicar a importância que esta peça tem e a forma como marca quem participa, numa crónica de jornal. A boa nova é que agora chegou a vez de Cabo Verde.

3. A primeira vez que vi a peça foi em S. Paulo, no final dos anos noventa. Encenada e interpretada por Miguel Seabra, juntamente com o espantoso actor Álvaro Lavin, para o Teatro Meridional, companhia que já foi homenageada no festival Mindelact, esta versão marcou-me para toda a vida e durante os cinco dias consecutivos de apresentação no maior centro cultural da metrópole brasileira, que vi sofregamente como quem aprecia um manjar dos deuses, jurei a mim próprio que um dia haveria de pegar neste texto e montá-lo para o teatro das ilhas. A grande dificuldade, para não dizer mesmo o grande atrevimento, era saber o que fazer depois de assistir a tão magna lição de bem fazer teatro, sem correr o risco de cair num precipício, porque aquele foi um daqueles espectáculos que me fez questionar o que raio andava eu a fazer no mundo do teatro, havendo por ai quem o fizesse tão bem. Como bem disse Miguel Seabra numa entrevista, esta montagem representa, antes de tudo, o triunfo da simplicidade cénica, a mais difícil meta de se alcançar no teatro.

4. Hoje, passados quinze anos sobre esse primeiro choque, resolvi arriscar. Sinto que o percurso e a experiência que tenho, se bem que não chegue para atingir a perfeição cénica de que fui testemunha, me dá margem de manobra para um eventual perdão, dos meus colegas e do público, se acontecer o caso provável da minha habilidade como encenador não conseguir dar a resposta adequada que o texto original demanda. Uma segunda razão que me incentivou para esta aventura tem a ver com uma homenagem que senti dever prestar a um actor cabo-verdiano, uma homenagem pessoal e intransmissível, que não só é dos actores mais experientes da sua geração, como também foi dos poucos que continuou a fazer teatro depois do novo ciclo que se iniciou com o projecto teatral do Centro Cultural Português, na cidade do Mindelo. Falo, evidentemente, de Manuel Estêvão, a quem dedico, de corpo e alma a montagem desta peça, e a quem fiz questão de acompanhar em palco, para mal dos meus e dos vossos pecados. Se pensarmos na interpretação que Manuel Estêvão soube dar ao protagonista da adaptação teatral que fizemos do romance “No Inferno”, de Arménio Vieira, e que deixou muita gente espantada, teremos uma noção mais certeira da responsabilidade que cai sobre os meus ombros com a actual empreitada.

5. Num dos livros fundamentais da história do teatro, O Espaço Vazio, de Peter Brook, o encenador inglês defende que o teatro faz-se e constrói-se todos os dias a partir de uma relação tripartida. A do actor com o texto, a do personagem com o público e a do actor com aquele com quem contracena em palco. Daí que esta peça seja ideal para um tributo desta natureza. Porque é uma montagem focada na relação dos actores com o público. E centrada na relação dum actor com o outro em cena. Solano e Rios são os dois personagens de Ñaque e portanto, ao vestir esta pele, somos, ao mesmo tempo, actores e personagens. Somos actores e amigos. Companheiros de uma vida toda, cheia de peripécias. Eles próprios, carismáticos e felizes, trabalhadores e talentosos, românticos e pobres, são actores que representam e mostram em palco o processo de mudança de pele que constitui o dia-a-dia de um actor, e só eles sabem o quanto isso dói e custa. Experimentem pegar na vossa pele, arrancá-la, colar outra no seu lugar. Imaginem a dor. Entendam agora quão nobre pode ser a arte de representar.

6. Não me considero um actor de teatro. Sou um encenador que, de quando em vez, gosta de estar em palco, pelo desafio que representam a interpretação de determinados textos e a pesquisa que alguns personagens exigem de nós. Mas sendo esta uma homenagem a um actor, não poderia deixar de estar ao lado dele, num palco, onde mais? Ainda por cima, com um texto desta natureza que exige da encenação uma relação aberta, que pede um teatro que se faz diante dos olhos de todos, revelando os seus truques e segredos. Tendo um palco vazio como ponto de partida, palco esse que voltará a ficar vazio no final de todas as contas. Neste vazio, tão difícil de ser preenchido com vida, os dois actores focam-se na relação com o público. Um público que está sempre lá. Se não estiver, não há teatro. Sempre igual? Mais ou menos. Cansativo? Sim, por vezes. Mas Agostino Solano, faranduleiro de notável engenho, e Nicolau dos Rios, famoso representador, andam nestas andanças há mais de quatrocentos anos e sabendo isso, não há como não continuar, com força redobrada, a cada morte anunciada pelo final de cada apresentação. As palmas finais, sinceras ou não, são uma espécie de marcha fúnebre que oficializa o enterro da obra de arte. Ter consciência disso e seguir em frente é o mesmo que render o tributo a essa figura suprema, que neste caso será Dionísio, o deus do teatro, da vegetação e do vinho. Do teatro, porque foi a partir dos rituais em sua homenagem que o teatro ganhou estatuto próprio, da vegetação porque tal como a arte cénica se renova a cada estação, e do vinho, pois a sua degustação nos permite ser outro(s), que na verdade, faz(em) parte do que temos de mais sincero e profundo.

7. Solano e Rios são, pois, dois actores medievais paupérrimos e de nomes pomposos, que caminham, perdidos no tempo, há quatrocentos anos e acabam por aportar em Cabo Verde. Andaram em S. Nicolau, Cidade Velha, Ribeira da Barca, vila Leopoldina, hoje cidade do Mindelo. E ao falarem das suas questões e dos problemas concretos da sua arte tentam, quem sabe se de forma vã, por a nu as questões e as lutas do artistas e do público, de quem faz e de quem vê. São uma metáfora do teatro e da vida e refazem o sentido de continuar a construir esse edifício cada vez mais rico chamado teatro cabo-verdiano. Será estranho? Diferente. Outra vez? Outra vez. Venham vê-los, porque só assim a sua (nossa) arte fará sentido.

Mindelo, 25 de Maio de 2011




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