Declaração Cafeana

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Na cidade grande há passatempos que nos fazem viver com um pouco de menos angústia o stress que pode provocar andar-se nessa mesma cidade, de carro ou nos transportes públicos. Mas principalmente, nestes últimos. E é interessante para quem, como eu, estava tão habituado a andar na rua numa pequena cidade onde toda a gente se conhece, deambular pelas ruas, paragens de metro, autocarro ou comboio e observar o mundo fervilhante que nos rodeia. A primeira constatação é que ninguém se olha. Ou estão a olhar os jornais que são distribuídos gratuitamente, ou estão a olhar para o chão, ou com o olhar perdido, ou quando muito para uma outra pessoa se esta for companhia, família, amigo ou namorado. E como as pessoas não se olham, posso-me deleitar neste exercício de observação sem ter que passar por indiscreto ou mal educado. Porque nos dias de hoje, olhar alguém nos olhos é sinal, no mínimo, de velado descaramento.

Mas não é apenas o olhar que se deleita. O ouvido também, se para isso estiver disposto. Uma cidade como Lisboa reflecte de forma exemplar o significado da palavra cosmopolita, e é comum estarmos dentro do metropolitano e apenas numa pequena viagem ouvirmos as mais variadas línguas, se entre-cruzando pelo meio do barulho das carruagens em andamento ou das portas abrindo e fechando. Num outro dia, um estranho casal, bizarro mesmo, de meia idade, falava uma língua esquisita, provavelmente um dos idiomas dos Balcãs, e pareciam saídos de um filme de Kusturica. Ao lado, um grupo de angolanos falavam uns com os outros como se não houvesse mais ninguém naquela cabine, ou seja, aos gritos e em festa. Um pouco mais à frente, espanhóis, ao lado um casal de namorados que fala em francês, também presente o típico sotaque lisboeta de um adepto do clube da Luz (andam a falar muito, esses!), dois brasileiros e, alegria suprema, uma crioula, ainda jovem, falando no telemóvel para Cabo Verde, com um delicioso sotaque de S. Nicolau!

Se nos deixarmos encantar pelo caleidoscópio urbano - e humano - de uma cidade como esta, as idas e vindas para o trabalho ou para a escola, ficarão certamente menos penosas. Na época das redes sociais informáticas, as pessoas olham-se nos olhos cada vez menos. É um paradoxo. Até porque continuo a acreditar que no meio de tanta violência e de actos ignóbeis, de tanta maldade e hipocrisia, há sempre algures, ao alcance de uma mão (ou de um olhar), uma réstia de humanidade. 





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5 comentários:

são branca disse...

Aqui está um dos meus exercícios(?) favoritos. Deambular por aí olhando, parando, escutando, imaginando vidas e sonhos. Às vezes decreto "dia nacional dos transportes", agarro nos putos e de transportes públicos partimos um dia inteiro à descoberta da vida da cidade grande.

Anónimo disse...

Engraçado, faço esse exercício (de olhar as pessoas que não se olham) todos os dias. E também agrada-me muito o andar numa carruagem cheia de línguas e feitios diferentes.

Sisi disse...

Como eu te entendo João e olha que já estou há 6 anos vivendo em Lisboa, e 3 sem ir à Cabo Verde.
Esta observação que falas, é um exercício que faço sempre que estou sozinha nos transportes públicos. Dessas observações já vi, ouvi e participei de situações tão caricatas, engraçadas e até mesmo revoltantes que nem imaginas, e muitas delas contadas ninguém acredita. Contudo é um exercício, no mínimo interessante.

Departamento de Português disse...

Embora eu more numa cidadezinha espanhola, acho que é uma grande ideia essa do "Dia Nacional dos Transportes".

Chema DG

Catarina disse...

Lindo!