Crónica Desaforada

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Os Sete Pecados Capitais Crioulos

1. A propósito dos Sete Pecados e deste post no Bianda, venho por este meio recordar a peça que encenei em 2002 para o Atelier Teatrakácia, denominada Os Sete Pecados Capitais, e que foi um tremendo sucesso de público, pela principal razão (julgo eu) de nos colocarmos perante os nossos próprios defeitos de uma forma humorada, utilizando o teatro como ferramenta de comunicação.

2. A peça tinha, entre outros factores de destaque, Nuno Delgado como protagonista, um dos melhores actores cómicos com quem já trabalhei e que haveria de brilhar, alguns anos depois, com a sua interpretação de João Grilo, na encenação que fizemos aqui no Mindelo do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

3. Em Sete Pecados Capitais, o personagem do Nuno era uma espécie de bispo moralizador de uma qualquer seita religiosa, falava português com sotaque brasileiro (como não podia deixar de ser) e na sua primeira intervenção, onde entra em cena com uma mala de cartão antiga (a mesma mala que trouxe os meus primeiros pertences para Cabo Verde há 17 anos atrás), enumera os sete pecados capitais, com a respectiva tradução em crioulo.

4. O primeiro dos pecados enumerados é a Luxúria cuja tradução encontrada foi Vissarada. Para o caso da Gula, a tradução foi Espissadeza. Para a Ira, o termo certo foi Vluntareza. Para a Avareza, Dzusper pa dinher, Orgulho a Basofaria, a Preguiça foi traduzida pelos termos Relax ou Deskontra e finalmente a Inveja que era simplesmente a... Inveja. Com esta introdução o personagem conquistava de imediato o público e provocava enormes gargalhadas com as traduções para o crioulo.

5. A Vissarada, pecado capital maior dos ilhéus que como se sabe aumenta em noites de lua cheia, é nos tempos que correm um dos principais motores da economia actual, seja ela paralela, formal, informal, horizontal ou mesmo desenvolvida na posição vertical. Os semanários da terra tem dedicados vastas páginas e reportagens à descrição do negócio que só existe porque o mercado tem enorme potencial, porque a matéria prima é de elevada qualidade e porque há falta de alternativa para outras fontes de rendimento.

6. Vai daí, quem tem dois palmos de cara e corpim de sereia utiliza os seus atributos para atrair clientes, o que nem é muito difícil de acontecer neste nosso canto tendo em conta a quantidade de vezes que certo pessoal deixa a cabeça de baixo dominar totalmente a de cima, factor decisivo para a concretização do negócio ou da transacção tipo "eu faço a manutenção, tu dás-me um móvel 3G" ou "troco-te o óleo e amanhã quero um vestido novo da botique Vogue"...

7. A Espissadeza do crioulo não se resume apenas às questões culinárias mas fica sempre claro nas abertura de exposições de artes plásticas que o quadro mais apreciado é aquele que fica junto da mesa dos comes e bebes. Mas ter mais olhos do que barriga, outra frase que define a presunção concreta deste pecado, não é imune à forma de estar dos nossos políticos. Ontem éramos uma espécie de Dragão africano, hoje estamos na linha da frente na Boa Governação e somos chamados para encontros pessoais com Obama.

8. Com tanta fartura, como aquela de prometer crescimentos a dois dígitos, ou a descida do desemprego para um apenas, não admira que acabemos por ter algumas congestões circunstanciais provocadas por alguns alimentos indigestos tipo TACV's ou Electra's que uma vez ingeridos, não há pastilha digestiva que nos valha e livre duma poderosa diarreia e má disposição correspondente.

9. Bem, para a Vluntareza as explicações não são muitas a não ser aquela que dá muito jeito quando não se consegue explicar o que não tem explicação, ao dizer-se que "é algo inato", ou seja, sem remédio. Marido bate na mulher, ninguém se mete. Pai espanca o filho, ninguém denuncia. Dois transeuntes discutem e batem-se à pedrada na rua e todos assistimos ao espectáculo à espera do sangue que inevitavelmente acabará por jorrar.

10. O Dzusper pa dinher, a basofaria e o relax, os correspondentes crioulos à Avareza, Orgulho e Preguiça, andam incrivelmente de mãos dadas e para isso basta colocar um olho na nossa administração pública ou na política do horário único. O importante mesmo é que não nos falta o pão nosso de cada dia, que é como quem diz o salário ao fim do mês e se possível, na proporção directa da importância da nossa cadeira, com todas as regalias a que julgamos ter direito.

11. Não gostamos muito de nos esforçar, preferimos um emprego a um trabalho, mas mesmo assim ai de quem nos ouse criticar - se for estrangeiro ainda é maior a ofensa - porque a obrigatoriedade de dar a devida resposta vai-nos obrigar a um esforço suplementar que a nossa desconstra não alimenta e muito menos justifica. Até porque como todos estamos cansados de saber somos os melhores em tudo o que fazemos e ai de quem se atreva a dizer o contrário!

12. Há alguns anos, o advogado Geraldo Almeida escrevia uma crónica muito boa sobre este aspecto da nossa realidade social, utilizando um termo justo: a moleza nacional, apontando o dedo ao nosso modus fazendis, à nossa capacidade de ir adiando para amanhã o que podíamos perfeitamente fazer hoje, à nossa busca incessante pela solução mais fácil, ou seja, e dito de uma forma simples, à nossa adopção total à chamada Lei do Menor Esforço.

13. Falta falar da Inveja, cuja tradução para o crioulo não conseguimos encontrar nesse espectáculo. Esse talvez seja o mais compreensível e humano dos pecados, até porque mesmo confessando que tenho um teor pessoal e implacável para cair na Luxúria ou na Preguiça (principalmente a primeira logo seguida da segunda), confesso também invejar aqueles que são melhores em determinados aspectos. Até porque a Inveja acaba por ser uma espécie de admiração pelos outros e aposto que este é um pecado fácil de perdoar. Ou não fosse ele Capital.


Mindelo, 17 de Setembro de 2009





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11 comentários:

malaguitinha disse...

Concordo com tudo, mas olha que para "avareza" eu preferiria "djuzeza" que vem da palavra "dju", muito usada no meu tempo, e ao que parece uma forma nada amigável do cabo-verdiano se referir aos judeus..., também " cotovel fchóde". Para a inveja, temos "oiáda", "oitenta melodioso" , que são expressões que adoro na criolo de soncent.

Abraço

PS: criol ê ou n´ê sábe? Sábe pa fronta!

Pimintinha

Unknown disse...

Apenas me ocorre que há mais de 60 anos um avarento era um "mon ftchód" o que, eventualmente, daria
"monfchadeza" para avareza...

Unknown disse...

Malagetinha, tens razão: djudjeza é um fantástico e mais ajustado termo!

Zito, também gostei desse monfchadeza! hehehe

Et disse...

Já que estamos em crioulo: mos bo e txipi (kenha ki ka ta paga nada...mas si bo da-l el ta toma so faxi)

Tina disse...

Genial esta descrição dos sete pecados capitais crioulos!

Só não gosto desse Z à Alupek, haha.

ManuMoreno disse...

Ainda dorme
o querer fazer
Ainda dorme
o pensar agir
Todos sao morcegos
e o Mundo esta de cabexa pra baixo.

ManuMoreno
Kel Abxom di Kuraxom!!!

argumentonio disse...

João, posta assim a questão, venham mais pecados!

e, já agora, mais capitais, eh eh ...

abraço penitente ;->>>

Carla disse...

Oi João
Passei aqui só para te dizer: Obrigada!!! porque este ano acho que vieram mais do Mindelact para a Praia. Obrigada por partilharem a festa do teatro com a capital.
Agora estou na expectativa de que o miragens de Angola também venha(please!).
P.S. Sobre o assunto em pauta, mim um ta otchá q pecód más sabe ê tem é preguiça: "dolce fare niente!"hummmmmmmm

adilson Jesus (Didi) disse...

Olá João.

não pude evitar deixar o meu comentario, pois essa tradução está fantástica. parabens... apesar de otxá que avareza podia ter ote significado.
também pa dzeb que vluntareza podê tem un ote significad e ja bo sabel.

mas ote cuzinha... bo podê assumi esse bo costela de MPD sim, mas es criticas que hj bo fazê li fcob um bocod feio..

un ca curti... mas kem é min pa dzeb ukê fazê n'dvera.

continuá kis bons post.

Unknown disse...

Não resisto em responder ao caro Didi, a quem agradeço o comentário. "Costela MpD" porquê? Por ser crítico de muito do que se passa em CV? Por não ter problemas em assumi-lo? Mas se o caro estivesse atento saberia que muitas outras vezes há em que elogio iniciativas governamentais. Será que é a minha "costela PAI" a falar mais alto?

Meu caro, as minhas costelas são todas independentes. Até a de Adão.

Abraço

me disse...

Tud perfeit ma "Ira" e maj du ke "Vluntareza" ate porke vluntareza pode ter un sentid kompletament relasionod a viss na korpe, etc. Ira ka e maj moda "Raiva"?