Sempre ouvi dizer que o Carnaval representava a maior festa pagã do Mundo. Segundo rezam (salvo seja) as enciclopédias "pré-Cristãos medievais e Carnavais modernos tem um papel temático importante. Eles celebram a morte do inverno e a celebração do renascimento da natureza, ultimamente reunimos o individual ao espiritual e aos códigos sociais da cultura. Ritos antigos de fertilidade, com eles< sacrifícios aos deuses, exemplificam esse encontro, assim como fazem os jogos penitenciais Cristãos. Por outro lado, o carnaval permite paródias, e separação temporária de constrangimentos sociais e religiosos. Por exemplo, escravos são iguais aos seus mestres durante a Saturnália Romana; a festa medieval dos idiotas inclui uma missa blasfemiosa; e durante o carnaval fantasias sexuais e tabus sociais são, algumas vezes, temporariamente suspensos.”

Por outro lado, sempre fui acostumado a que amigos e conhecidos mais religiosos me viessem dizer que durante estes dias loucos estariam "em retiro", aproveitando que a cidade era invadida pelo êxtase para, em conjunto com outros companheiros e fugindo da confusão, irem para longe da cidade, aproveitando para uma reflexão que de alguma forma os alimentasse espiritualmente.

Não deixa de ser por isso curioso que o Carnaval do Mindelo tenha tido nesta edição de 2012 um grupo ligado à Paróquia de Nossa Senhora da Luz a desfilar, com música, carro alegórico, alas, coreografias e tudo o que é preciso para não envergonhar uma passagem pelo circuito habitualmente ocupado pelos foliões. Com túnicas, bíblias na mão, personagens representando personagens caras à historiografia cristã, um modesto trilho eléctrico, cerca de uma centena de crentes fizeram-se ao carnaval e desfilaram pelas mesmas ruas do Mindelo. 

Longe, pois, vão os tempos de retiros. Numa ilha onde grande percentagem da população assume-se como católica praticante e que tem no Carnaval a sua maior festa popular, é caso para dizer que já não era sem tempo que os nossos católicos se juntassem à festa, pela positiva tentando simplesmente passar a sua mensagem. Tempos modernos ou como diz o outro, se não podes vencê-los, junta-te a eles!




Fantástica imagem de Tchitche, dos Mandigas do Mindelo. Bom Carnaval!





Ensaio sobre a cegueira

1. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Nesta última semana, uma das aulas do curso de teatro foi dedicada a ver o excelente documentário de Rui Simões a propósito da encenação pela Companhia de Teatro O Bando, do romance Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Neste filme somos confrontados com todo o processo de criação, extremamente complexo e exigente, principalmente para os actores, já que a peça implicou uma construção de personagem muito sustentada num intenso trabalho corporal, numa monumental cenografia que obrigava os intérpretes a um esforço adicional pelo simples facto de se deslocarem em cena e pela duração de toda a encenação, com cerca de três horas. Uma das componentes mais interessantes do filme é, sem dúvida, a entrevista ao próprio autor José Saramago que, com a sua habitual lucidez e inteligência, diz coisas que possivelmente já sentimos ou pensamos mas que nunca fomos capazes de exprimir por palavras nossas. Uma delas é esse mais do que óbvio mau uso que damos à nossa capacidade de observação do mundo que nos circunda, que nos tem transformado com o decorrer do tempo em cegos visuais.

2.É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.” O livro, tal como a peça adaptada, é uma profunda metáfora sobre a cegueira actual que se tem generalizado tal qual uma praga maldita e ameaça acabar definitivamente com a nossa capacidade de criticar, julgar, pensar, reflectir e, em última instância, amar. É, como é habitual neste autor, uma abordagem desarmante da natureza humana embora há quem defenda que Saramago põe a nu o nosso pior para que, por força do contraste, possamos ter a consciência do melhor. Quem sabe se colocados cara a cara com a crueldade não estaremos um dia mais habilitados para acordar deste sonolento deixa andar com que encaramos o nosso quotidiano. A violência aumenta, os preços dos combustíveis não param de subir, a nossa juventude está alienada, o sistema viciado, o enriquecimento ilícito menosprezado, o lixo espalhado, o discurso politico empobrecido, a capacidade de cada um pensar pelas suas próprias cabeças reduzido ao quase nada. Daí que aceitemos passivamente tudo o que nos é imposto pelos diferentes poderes com os quais somos confrontados durante a vida: o Governo central, as autarquias, os patrões, os professores e, em casa, os nossos educadores. Continuando assim, corremos o risco, como indivíduos e como Nação, de acabar como escreve Saramago, metade indiferença, metade ruindade, quando percebermos que a energia que gastamos a maldizer e a destruir é muitíssimo superior que aquela que investimos para instruir ou criar, seja riqueza, conhecimento ou benfeitoria.

3.O medo cega. São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.” Estamos numa época em que o medo impera: o medo de falar, o medo de dizer o que pensamos, o medo de sair à rua, o medo de um atentado, o medo de que a nossa filha menor apareça grávida em casa, o medo de ouvir, o medo de quem é diferente, o medo de ousar, o medo de despir, o medo de experimentar, o medo de tocar, seja nas feridas seja nas almas. É o pior dos medos porque nos domina sem luta, nos anestesia sem picada, nos gela até aos ossos, nos impede de movimentar contra a corrente enfadonha das grandes maiorias artificialmente construídas pelos meios de informação de massa. O perigo é maior para quem se quer artista pelo fazer. Porque a arte não se compadece com monotonia, com carreirismo ou com plágios mais ou menos descarados. Sempre acreditei, como disse o catalão Antoni Tapies, um dos maiores artistas contemporâneos (recentemente falecido), que a forma artística que não é capaz de provocar o desconcerto no espírito do espectador e não o obriga a mudar a forma de pensar, não é actual. É neste sentido, nesta linha de pensamento, que tristemente constato estarmos a caminhar de frente para trás, a passos largos para uma nova era de escuridão ou de brancura total, porque se há algo que aprendemos sobre esta cegueira é que esta é branca e não negra. Como uma folha de papel sem que ninguém lhe tenha pegado para nela escrever coisa alguma. É apenas uma folha de papel. Branca e mais nada. Se nela colocarmos um poema de Arménio, Neruda ou Pessoa, por exemplo, passa a ter um valor proporcional à forma como o poema nos tocou. O pior, parece-me, é que uma folha com um poema tenha o mesmo valor para tanta gente hoje em dia que uma folha que não tenha absolutamente nada. E no dia em que a poesia deixar de fazer sentido, a besta que há em nós vencerá a batalha que colocará a nossa humanidade definitivamente confinada numa urna triste e dourada.

4.Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.” Quando uma plateia reage com o riso a uma cena de violação, onde mulheres são estropiadas de forma inapelável, procuro não julgar mas antes entender a razão de ser para tal reacção. Pode ser um riso nervoso de incómodo, pode ser um riso perverso de quem se deixou embrenhar pela crueldade alheia. Pode ser também porque estamos cegos, apesar de ver. Porque somos como as personagens de Saramago e estamos fechados num enorme manicómio onde impera a lei do mais forte, a maledicência, a desumanidade, a violência, mesmo aquela que pensávamos nunca ser possível existir. E cegos caminhamos pelos dias, pelas ruas, pelos bares, pelas salas de aula, pelas casas, sem qualquer contestação, sem nenhuma capacidade de argumentação critica, comemos e calamos ou nem comemos e mesmo assim continuamos calados. Estamos hipnotizados pelo ritmo das milhares de imagens por segundo com que somos bombardeados e entramos a passos largos para o grosso bando dos cegos da alvura. Mas tal como em Saramago, há sempre no final uma porta para a esperança que ironicamente designamos de luz ao fundo do túnel. Neste caso particular continuo a defender que essa luz, essa esperança de que um dia possamos olhar com olhos de ver, está sustentada na arte. Sim, na arte, essa bóia salva-vidas de uma humanidade prestes a naufragar.

Mindelo, 16 de Fevereiro de 2012 (crónica publicada no jornal A Nação)






Os homens que fazem do 14 de Fevereiro uma "data especial" oferecendo bombons, peluches ou perfumes às suas companheiras fazem-no por convicção ou são apenas românticos de pacotilha com problemas de consciência? 

À melhor promessa, ofereço um café








Papado

Chegou à chefia do Seminário. Mesmo assim, ainda não se contentava. Seu desejo era alcançar o posto máximo da Igreja. Imaginava-se no Vaticano, acenando para as nações.

Caminhava na rua, absorto nesta visão, quando um caminhão desordenado encurtou-lhe os planos.

Virou papa.


Wilson Gorj (ilustração: "Cruz y Tierra, de Tàpies)






A caixa de comentários do Margoso andou inactiva durantes uns dias porque eu me meti a aventureiro a tentar aplicar um esquema qualquer que, pelos vistos, não resultou. Vá lá que consegui repor a ordem na coisa e se recuperaram os quase vinte mil comentários que este estabelecimento já tem contabilizados.

Prontos, podem voltar a comentar!





"É que o anátema do culto da violência não pode recair apenas sobre certas pessoas e em bairros localizados, de forma hipocritamente conveniente, dos nossos centros urbanos, quando ela está bem presente nos lares, onde vai corroendo a harmonia das famílias, e igualmente no trânsito rodoviário, nas relações de trabalho, nas redes sociais, na comunicação social e no discurso político, onde se manifesta através de uma verborreia aviltante quase sempre consentida e muitas vezes incentivada."

Orlando Rodrigues - Jornalista (artigo completo, aqui)





Cara: "A sociedade cabo-verdiana é uma sociedade muito violenta" (declarações do PM, José Maria Neves)

Coroa: "O povo cabo-verdiano sempre foi um povo normal e de brandos costumes." (declarações de Carlos Veiga, líder da oposição)


Comentário Cafeano: neste delicado assunto, como são todos os que pretendem lidar com os nossos próprios defeitos, aplica-se aquele ditado que nos diz que em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão. No fundo, tudo isto depende do contexto e do prisma de análise. O que acontece por cá com o discurso político é que tudo o que é dito e feito por uns é tornado negativo pelos outros e elogiado por quem afina pelo mesmo diapasão. Porque se uns podem dizer que a afirmação do Primeiro-Ministro é, no mínimo, irresponsável e um sacudir a água do capote, outros poderão realçar a coragem política de assumir publicamente a existência de um problema, primeiro e essencial passo para o tentar resolver.

Se na minha experiência pessoal não tenho nada a apontar em relação ao carácter supostamente agressivo do cabo-verdiano já que em duas décadas de vivência a minha integridade física nunca foi ameaçada, por outro lado, não posso enfiar a cabeça na areia e negar a evidência que me bate à porta todos os dias, com violência não só física mas também, e muito acentuada, psicológica. Tenho procurado reflectir sobre esse carácter dual e ambíguo da sociedade, principalmente aqui no Mindelo, e também neste caso os sentimentos são contraditórios: por um lado, quando confrontados com as notícias que nos chegam do mundo, podemos respirar de alívio por estarmos a viver num lugar que cultiva a paz, mas por outro vem-me à memória demasiadas vezes um ditado argentino que nos diz que a um lugar pequeno corresponde invariavelmente um inferno grande.

Parece-me haver aqui, como vem sendo hábito, uma manifestação de claro oportunismo político, de parte a parte. As responsabilidades devem ser assumidas por todos os agentes políticos actuantes, caso contrário correm o risco de ninguém os levar a sério (para muitos já será tarde demais).

Registo aqui, finalmente, um comentário publicado por um leitor do Notícias do Norte (assina como José Pedro) que me parece ser uma interessante leitura da problemática da violência no arquipélago, tema que, como se vê, merece da parte dos nossos historiadores, sociólogos e psicólogos, uma aposta séria numa investigação académica que nos traga alguma luz, cientificamente sustentada, e não apenas regida por interesses político-partidários.

"JMN é um político da primeira linha, é primeiro-ministro deste país, e sabe mais que ninguém que na política há verdades que nunca devem ser ditas, sobretudo quando são de âmbito sociológicas. Foi uma fuga para frente que, vindo de quem vem, é imperdoável. Se foi para justificar a onda de violência que se regista neste momento por todo o país, então é muito pior. Isso não pode se tolerado por parte do principal governante. Dele se espera a promessa e actos de combate energético deste mal social. É que a violência não pode ser um bem cultural preservável, mas sim algo que deve ser combatido, se necessário com violência.

Posto isto e para nós que nada temos em termos de responsabilidades políticas, eleitores, votos, etc., temos que ser sérios e dizer, já agora que o tema veio a baila, que não há sociedades de formação escravocrata, sobretudo recente como a nossa, que não seja de carácter violenta. Talvez por milénios não perderá os seus traços de violência. Em todas as ilhas, mormente as de economia predominantemente agrícola, sempre predominou a violência, com nuances na sua forma dependendo de região para região ou mesmo de local para local. Os detentores de posse de terra sempre foram muitos violentos em relação aos deserdados, cometendo sobre eles constantes e cruéis crimes de sangue. Nos anos das carestias, como foi ainda na década de quarenta, a violência sobre os indigentes deixaram marcas indeléveis nas gentes pobres de Santo Antão, Santiago, S.Nicolau etc, em que pessoas foram enforcadas, carbonizadas, etc., por apenas se supor que roubaram um pé de mandioca ou umas bananas verdes. 

Falei até aqui de violência de sangue, pois a violência psicológica continua sendo Pão Nosso de cada Dia. Falar-nos de “brandos costumes” do povo cabo-verdiano impõe-nos perguntar o que é isso de brando costume. Sejamos sérios nas análises, ainda que doam a nós próprios. Ou então, melhor, calemos."

Está aberto o debate.





"Meu Deus, afasta de mim 
os venenos diários de quem não acrescenta, só diminui."

Caio Fernando Abreu - escritor