Nestes dias, em que mais um Verão está a ligar os motores e a entrar definitivamente em velocidade de cruzeiro, tenho dado por mim a olhar para as pessoas que invadem a cidade do Mindelo e verifico o quanto S. Vicente muda e se altera nestes quentes e agitados dias de Agosto. Não haja dúvidas que a proximidade de mais um festival de música da Baía das Gatas faz com que seja este o mês de eleição para que muitos emigrantes escolham ser esta a altura ideal para a marcação das suas férias e retornem à terra mãe para um merecido descanso.

Bem, merecido descanso é, naturalmente, uma força de expressão porque se há alguma coisa que caracteriza este mês na ilha do Porto Grande é a quantidade inacreditável de festas e comemorações, públicas e privadas que acontecem praticamente todos os dias nos hotéis, nas residenciais, nas empresas, nas ruas, nos bairros, nas casas, nos terraços dos prédios, nos quintais, nos becos, por todo o lado, o Mindelo transforma-se num imenso arraial, onde à tristeza é vedada a entrada. Talvez por isso esta seja uma campanha eleitoral que quase passa despercebida, tendo em conta que muitos dos comícios continuam a socorrer-se de grupos e bandas musicais, os mais variados, como chamativo para juntar as multidões indispensáveis aos discursos políticos e às imagens de televisão em tempo de antena. Então, esta sensação de festa permanente acaba por ser potenciada neste tempo de caça ao voto e não fossem os carros com anúncios sonoros em altos berros que nos furam os tímpanos anunciando as visitas dos candidatos presidenciais e os próximos comícios nos diversos bairros da cidade, e seriamos tentados a concluir que esta proliferação de concertos musicais seria apenas mais uma consequência do gosto particular pela folia e paródia que sempre caracterizou o habitante da cidade do Mindelo.

Mas não são apenas os imigrantes que animam as ruas e praças da urbe mindelense. Uma crescente presença de turistas, estudantes em férias, muitas pessoas que se viram obrigadas a ir trabalhar para outras ilhas, principalmente para a cidade da Praia, escolhem esta época para um regresso a casa e entram na onda festiva com a mesma naturalidade de quem bebe um copo de água fresca em tempo de calor. Os restaurantes e as esplanadas estão quase sempre cheios e o negócio recupera algum do fulgor perdido noutras alturas do ano. 

Pena que todo este ambiente de aparente alegria e leveza nos faça esquecer todos os problemas que assolam esta ilha, com uma taxa de desemprego absurda, uma inércia absoluta para a reivindicação e o exercício pleno de uma cidadania activa, um voltar para o próprio umbigo que faz com que cada um veja simplesmente a parte ignorando o todo. Que esta efervescência, que todas as noites sinto quando subo ao terraço do prédio onde vivo, e que me faz ouvir os ecos de múltiplas festas das mais variadas origens não nos faça esquecer de que um dia fomos uma ilha conhecida pelo seu poder criativo e reivindicativo e hoje nos limitamos a ser uma espécie de pátio onde todos atiram foguetes, esquecendo-se depois de que alguém tem que ficar para apanhar as canas e, mais importante do que isso, pagar a factura por tanta paródia.



Preguiça: definitivamente um dos meus pecados favoritos...






Dias de Sangue

1. Uma jovem cabo-verdiana, com todo o futuro pela frente, talentosa, amante da poesia, que marcou indelevelmente quem a conheceu pela luz que dela imanava, que recitava poesia em crioulo como poucos, pôs termo à própria vida, no Tarrafal, ilha de Santiago, deixando tudo e todos num estado de consternação generalizado. Conhecia-a apenas de vista, das sessões da Tertúlia Crioula, mas esta foi uma notícia que me deixou, no mínimo, abalado. Alguns dias depois, um casal é encontrado morto dentro da própria casa, no bairro da Bela Vista, no Mindelo, deixando sinais de grande brutalidade, ainda estando por apurar as causas da morte mas, ao que tudo indica, a tragédia aconteceu depois de uma violenta discussão entre os dois. Pelos comentários publicados por quem conhece a situação, terá sido o ciúme a provocar o que viria a culminar nesta terrível fatalidade. Assassinato, seguido de suicídio. E mais dois caixões para encomendar ao sempre lucrativo negócio da morte.

2. Praticamente todos os dias somos confrontados com notícias de violência extrema perpetuada nestas ilhas. Facadas, tiros, garrafadas, pedradas e agressões físicas de todo o género e grau variável de brutalidade. Entre familiares, entre amigos, entre amantes, entre membros de diferentes gangs, entre policias e ladrões, entre adultos e crianças, entre homens e mulheres, entre professores e alunos. De há muito que ultrapassamos essa barreira mítica da morabeza cabo-verdiana e de país dos bons costumes, onde gente de todas as idades se sentava à soleira das suas portas para colocar a conversa em dia. De há muito que ultrapassamos o tempo em que sair de casa não representava um perigo eminente mesmo quando a falta de luz acontecia mais por motivos de penúria nas infra-estruturas do que por incompetência de administradores. De há muito que a realidade real que vivemos todos os dias e com a qual somos confrontados ultrapassou os panoramas cor-de-rosa dos discursos dos nossos responsáveis políticos.

3. A vida tem menos valor no chão das ilhas, essa é que é essa. Já não se morre de fome ou de sede, mas também já não temos quem nos abra a porta de sua casa se estamos a ser perseguidos por algum bandido. Desconfiamos do colega do lado, passamos o tempo todo à espreita por detrás dos nossos ombros, lado esquerdo ou lado direito, pouco importa, com receio da facada que há-de, inevitavelmente ser desferida da esquina menos esperada. A hipocrisia, a maledicência, a falsidade e a cobardia transformaram-se em especialidades da casa. E por isso, já não observamos, apenas vemos; já não escutamos, apenas ouvimos; já não cheiramos, apenas localizamos o odor da carne podre e do mijo que tresanda pelos becos das grandes cidades; já não tocamos e acariciamos o outro, apenas usamos o contacto corpo a corpo como medida de defesa ou de ataque; já não nos damos o prazer de reconhecer e saborear ervas aromáticas de criativos cozinhados, apenas estamos treinados a desfazer na boca comida à velocidade que o stress diário permite. Daí, resta-nos o espelho, o nosso e o olhar que pensamos que os outros devem ter em nós.

4. Talvez por isso nos preocupemos tanto em manter a nossa forma física, com dezenas e dezenas de jovens, adultos e idosos correndo marginal para cima e para baixo, a todas as horas do dia, mesmo as menos prováveis, seja de madrugada, no quente do meio do dia, no final da tarde ou mesmo de noitinha, para ficarmos mais saudáveis, mais belos, mais esculturais, mais atractivos, mais bem connosco próprios e de tanto exercitar o corpo acabamos por nos esquecer de exercitar a mente. Gastássemos nós metade do tempo que cuidamos a correr, caminhar, nadar, fazer flexões, abdominais, desenvolvendo bíceps, triceps, dorsais, adutores, peitorais e todos os outros músculos que cabem no corpo humano, a exercitar a mente, lendo, reflectindo, analisando, criticando ou aprendendo, e quem sabe se nos sobrasse algum tempo para ver, ouvir, tocar, cheirar e saborear o outro, aquele ou aquela que está ali mesmo do nosso lado com um pedido de socorro encravado na garganta.

5. Desculpem-me os mais optimistas, aqueles que sincera e legitimamente acreditam que todo este progresso, com as estradas, as energias renováveis, as comunicações, as praças digitais, as empresas paridas num dia, as casas do cidadão, os novos centros de saúde, as Universidades públicas ou privadas, os índices de desenvolvimento humano das Nações Unidas, Unicef, Organização Mundial do Trabalho, Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e das outras mais variadas organizações mundiais que gostam de transformar os países em rankings dominados pela aritmética, consideram que isso faz de Cabo Verde um país saudável, pronto para todos os tremendos desafios que nos novos tempos não param de surgir, um depois do outro e outro e mais outro. Se somos hoje um país musculado, melhor preparado para os choques externos que possam surgir, tal como o desportista que treina todos os dias na Lajinha ou no ginásio do Djô Borja, somos também um país que não nos prepara para amar, ajudar, acariciar, tocar e muito menos, retribuir, criticar, crescer, reivindicar conscientemente, sem ter que o fazer como apenas mais uma ovelha num rebanho comandado à distância por chefias partidárias.

6. O pior doente é aquele que não sabe reconhecer os seus sintomas. Talvez pior ainda que o hipocondríaco que, por excesso de zelo, se arrisca a sofrer pela cura aquilo que não poderia sofrer por mazelas imaginárias. Não se trata. Disfarça as manchas com produtos de maquilhagem importados numa última viagem de serviço ao estrangeiro. Esconde as feridas. Coloca a cabeça na areia. Desde aqui peço desculpa por esta espécie de desesperança, mas esta triste campanha eleitoral que hoje vivemos é apenas mais um sintoma de como estamos cada vez mais a nos especializar nesse oficio de insultar o próximo, maldizer quem não afina pelo mesmo diapasão, ou pura e simplesmente, passar por cima de quem não pensa como nós, confundindo de forma reiterada e irresponsável adversários com inimigos. Se à riola de tempos não muito distantes éramos capazes de responder com fina ironia, hoje partimos para a violência em defesa da nossa honra supostamente maltratada, curamos as nossas chagas com ódio sem perceber que esse sentimento nunca curará nada, apenas tornará mais funda uma ferida que parece querer chegar aos ossos depois de nos ter perfurado a carne sem que disso déssemos conta.

7. A peça de teatro Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, em cujo processo de montagem me encontro neste preciso momento é uma tragédia. Quando decidi avançar para mais esta aventura questionei-me sobre a pertinência de mostrar em palco uma história em que um casamento se transforma num banho de sangue quase que anunciado, pela disputa de uma noiva indecisa. Há, tal como nas tragédias clássicas gregas, personagens que anunciam a desgraça, que prevêem a fatalidade, que vaticinam o destino cruel de dois homens na flor da idade, feitos para a vida e não preparados para a morte. Mas ninguém os ouve. Era só isso que era preciso. Como na poesia de Nelly, cujo sorriso flutuava no olhar, como a areia com as ondas do mar, com carinho, com cuidado. A serenidade de um amor que ninguém quis saber. Um amor que para muitos envergonha, ridiculariza, diminui, fragiliza. Mas esses que assim pensam, esses que perderam essa capacidade de usar os cinco sentidos em prol do outro, são esses que perdem. Só o amor salva. Só o amor cura. Escutem. Escutem mesmo. E mudem a face triste que invade as ilhas mágicas do Atlântico.

Mindelo, 28 de Julho de 2011



Não é por nada, mas em tantos anos de Cabo Verde não me lembro de ter assistido a uma campanha tão pobre, a um debate tão confrangedor, a uma disputa eleitoral tão tristonha. É uma pena. E também não seria má ideia procurar legislar sobre os carros de propaganda que nos entopem os ouvidos praticamente vinte e quatro horas por dia, a níveis certamente lesivos para a nossa saúde mental e auditiva, que só contribuem para afastar os cidadãos da luta e do debate político. Assim não.




A Política 

O filho fala para o pai:

- Pai, eu preciso fazer um trabalho para a escola, posso fazer-te uma pergunta?

- Claro meu filho. Qual é a pergunta?

- O que é Política, pai?

- Bem, vou usar a nossa casa como exemplo. Sou eu quem traz dinheiro para casa, então sou o "Capitalismo". A tua mãe administra (gasta!) o dinheiro, então ela é o "Governo". Como nós cuidamos das tuas necessidades, então tu és o "Povo". A empregada é a "Classe trabalhadora", e teu irmão mais novo é "O Futuro". Entendeste, filho?

- Mais ou menos, pai. Vou pensar...

Naquela noite, acordado pelo choro do irmão mais novo, o menino foi ver o que estava a acontecer. Descobriu que o bebé tinha sujado a fralda e estava todo emporcalhado. Foi ao quarto dos pais e a sua mãe estava a dormir um sono muito pesado. Então, foi ao quarto da empregada e viu, através da fechadura, o pai na cama com a empregada. Como os dois nem percebiam as batidas que o menino dava na porta, ele voltou para o seu quarto e acabou por adormecer de novo.

Na manhã seguinte, na hora do café, ele falou para o pai:

- Pai, agora acho que entendi o que é Política!

- Ótimo, filho! Então explica lá!

- Bom, pai, enquanto o Capitalismo fode a Classe Trabalhadora, o Governo dorme profundamente. O povo é totalmente ignorado e o Futuro está todo cagado!




Na sequência dos sucessivos cortes de luz e falta de água, que desde há meses tem fustigado a capital do País, cidade da Praia, foi anunciada uma manifestação de repúdio e protesto tendo a Electra como principal alvo. Tendo em conta o número reduzido de participantes, se comparado com a quantidade tremenda de pessoas que são, e tem sido, prejudicadas por essa situação de penúria de água e luz, confesso que fiquei algo desapontado. 

Alguns órgãos de comunicação social deram conta da participação de cerca de três centenas de pessoas na manifestação, o que me parece manifestamente pouco, dada a gravidade da situação. Hoje, em que todos os candidatos à Presidência da Republica clamam pela patente da cidadania, talvez não fosse mau reflectirmos um pouco sobre essa falta de capacidade de mobilização dos cabo-verdianos, quando o assunto é também do seu interesse. No dia em que foi marcada a tolerância de ponto pelo Governo, para a campanha nacional de limpeza, também foi um pouco isso que se assistiu: metade limpava, a outra metade assistia com uma Strela fresquinha nas mãos e um sorriso cínico no rosto, como quem diz, “mim, n ka tem nada a ver kess koza!”

Parabenizar quem participa nessas acções cívicas não impede que possamos questionar também porque é que ainda estamos tão aquém do que seria desejável para podermos dizer que temos em Cabo Verde uma sociedade civil activa, consciente, participativa e interessada. A verdade é que não temos. Ainda são poucos os que tem consciência de que a união faz a força, e que se a manifestação de protesto pelo mau funcionamento da Electra tivesse tido, por exemplo, o mesmo número de participantes que tem, por exemplo, o festival de música da Gamboa, cerca de 40 mil pessoas, a pressão para que este problema fosse resolvido, a consciência de que o Governo tem que encontrar uma solução nova para uma questão que já tem barbas de tão antigo, seriam infinitamente maiores.




"Sukutam
Sima sol ta poi na kalmisera mar
Tartaruga ta poi na koba-l ria
Nha Olhar ta poi na fundo di bus odjus
Pa desova um sentimento grandi…"

Eneida Nelly





O termo World Music ganhou projeção internacional a partir da década de 1980, graças a utilização de elementos musicais pouco conhecidos do público de cultura anglo-saxónica em geral. A sua utilização na música pop aconteceu pelas mãos de artistas como Peter Gabriel (que fez parceria com o artista paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan e com o senegalês Youssou N'Dour), Paul Simon ou David Byrne. Um outro colaborador importante foi George Harrison, que nas décadas de 1960 e 1970 trouxe ao mundo do rock a sitar indiana, tornando-se amigo de Ravi Shankar. Um representante muito importante da "pop world music" no Brasil é André Abujamra, que tem uma extensa obra dedicada à pesquisa e divulgação da diversidade cultural.

Pois bem, a cidade da Praia viveu este fim de semana a primeira edição do um auto-intitulado Cabo Verde World Music Festival. Quando fiquei a saber que o país promoveria um festival do género confesso que fiquei esperançado de que esta pudesse ser uma excelente ocasião para termos um festival de música que saísse dos padrões habituais dos grandes festivais organizados pelas Câmaras Municipais, incluindo a Baía das Gatas, Gamboa e o festival de Santa Maria.

Mas quando vi que para representar aquele que é, muito provavelmente, o país mais rico, criativo e diverso do mundo na área da produção musical (o Brasil), tinha sido escolhido o grupo As Tigresas do Funk (na imagem), confesso que fiquei não só desiludido como espantado. Aliás, pelas imagens que foram seleccionadas na televisão nacional de Cabo Verde dos vários participantes, talvez não fosse mau dar um novo nome a este evento, certamente fundamental para a promoção do país além fronteiras, como por exemplo, World Bundas Festival. 

Enfim, não vai ser desta que vamos poder ter um Zeca Baleiro a tocar nas nossas ilhas.





Este fim de semana, que a cidade do Mindelo está em festa com celebrações de finalistas de praticamente todos os graus de ensino, desde os infantários até às Universidades, lembrei-me que talvez não fosse má ideia comentar uma notícia que saiu esta semana na Nação, que dá conta, em letras garrafais que a "Uni-Cv abre caça às bruxas". Fiquei curioso e fui ler em que consistia essa terrível represália, certamente pouco recomendável num país democrático. E fiquei informado do que seria essa tal "caça às bruxas": a Reitoria colocou em prática uma avaliação dos professores cujo contrato caduca no presente ano lectivo. Segundo ainda vem escrito, a medida está a ser recebida pelos professores "com um misto de espanto, apreensão e revolta."

Não sei se percebi muito bem a razão para tanto alarido. Em primeiro lugar, se os professores fizeram o seu trabalho bem feito, e todos queremos crer que o fizeram, não tem nada a temer. Em segundo lugar, se estão em fim de contrato e há a possibilidade deste ser renovado, há que ter algum critério para se decidir se o professor a, b ou c merece a confiança do Estado para continuar a dar aulas na Universidade Pública. Não vejo onde possa estar a polémica. 

Talvez o maior problema aqui seja a falta de conhecimento sobre como será feita a referida avaliação e saber se, tendo esta como pretexto, a ocasião será aproveitada para afastar vozes críticas. Mas isso são contas de outro rosário. Uma vez sabidos os resultados e os métodos, poderemos então tirar conclusões. Se um professor com reconhecida e comprovada competência técnica, científica e pedagógica não vir o seu contrato renovado por alguma razão menos clara, terá, então sim, todas as razões para protestar, com os instrumentos legais que certamente tem ao seu dispor. 

Quem não deve não teme. Se os professores fizeram o seu trabalho bem feito, não tem nada a temer, antes pelo contrário. Agora, não podemos estar sempre a mandar bocas sobre a falta de qualidade do nosso ensino superior, privado e público, e depois bradar aos céus, e gritar que há uma "caça às bruxas", só porque os principais responsáveis pela transmissão dos conhecimentos ministrados nas Universidades estão ser avaliados para que se decida se um contrato de trabalho é ou não renovado.





Onde se escondem os fantasmas durante o dia?*

À melhor resposta, ofereço um café




* Pergunta sacada aqui






Limpemos as nossas cabeças

1. A maior angústia de qualquer criador, principalmente na área cénica, é que uma peça de teatro quando é apresentada morre ao som das palmas do público que a ela assiste e que, dessa forma, transforma o aplauso, mais ou menos contido, numa espécie de marcha fúnebre que provoca mais vazio do que satisfação. Melhor, uma satisfação sim, de dever comprido, como quem olha para trás e pensa: valeu a pena, ou podia, quem sabe, ter feito um pouco melhor. Mas depois as pessoas vão para as suas casas, e nós ficamos ali perante uma sala vazia, oca, ainda com resquícios e ecos de sons e energias resultantes do cerimonial cénico e não temos outro remédio senão apagar com uma borracha o que vivemos e nos prepararmos para começar tudo de novo. Nada é mais amargo, digo-o por experiência própria, do que um encenador sentado num auditório desabitado, olhando para um cenário que já lá não está, para um espaço que momentos antes estava cheio de vida, de cor, de magia e que agora já não tem mais nada, é apenas um espaço vazio.

2. Pode até parecer um pouco dramático esta ideia da morte ligada à arte cénica, mas podemos também pensar em limpeza. Nestes dias em que tanto se falou nisso, em que o Governo de Cabo Verde decretou um Dia Nacional da Limpeza como prevenção contra o mosquito da dengue, talvez seja o momento ideal para uma reflexão destas. Há que limpar a nossa mente das ideias, ritmos, cores, sensações e principalmente, apagar as nossas indubitáveis e indestrutíveis certezas, também como medida de prevenção, não contra alguma doença mas contra os nossos fantasmas, aqueles que nos transformam em seres pedantes, convencidos, arrogantes, merecedores do mundo e arredores, melhores certamente que o nosso vizinho do lado. Façamos essa limpeza e tornemo-nos amadores de novo, principiantes e aventureiros. Neste momento em que inicio a montagem de uma nova produção teatral o meu grilo falante não se cansa de me avisar: é hora de apagar todas as tuas ideias pré-concebidas, não sem reflectir sobre tudo o que já passaste, mas com a crença profunda de que o conjunto de experiências e emoções que daí resultaram não passam disso mesmo, algo que já passou. Para iniciar um novo processo criativo só temos dois caminhos: ou vamos pela utilização fácil de fórmulas já gastas e usadas, com alguma confiança de que não tem como não resultar de novo, ou adoptamos o desafio de que o vazio, seja ele cénico, intelectual ou vivencial, é a nossa única referência, o nosso inevitável ponto de partida.

3. Claro que sempre podemos questionar: e não se leva nada do que já se viveu? Não se aprende com os erros nem com os sucessos? Não devemos nós ter em conta de que só com uma cuidada análise do passado poderemos crescer enquanto seres humanos e criadores? Com certeza que sim. Mas uma peça de teatro, uma vez apresentada, como que fica congelada nas memórias de quem nela participou, de um ou do outro lado. O que se leva dela é muitas vezes um conjunto de impressões que nos fazem sentir mais vivos e seguir em frente. Na arte cénica a ardósia está sempre limpa. Talvez esteja aqui o segredo da nossa capacidade de perdoar quem nos magoa e virar a página. Entender quem olha para nós e para o nosso trabalho e tem dele uma imagem que nos parece injusta, imparcial, maldosa, preconceituosa. Não nos deixarmos afogar por ressentimentos que nada trazem além da provável possibilidade de nos encher apenas com sentimentos que corroem por dentro, nos transformam em meras máquinas de parada resposta, como se a forma como os outros olham para nós não fosse também o resultado directo da nossa acção, na vida e na arte.

4. Limpemos, pois, as nossas mentes. Agradeçamos a quem perde tanto tempo a analisar o que somos e o que fazemos, mesmo que em alguns casos o possa estar a fazer por desígnios dúbios. Tenhamos consciência de que certamente haverá nessa observação factos, circunstâncias ou julgamentos de carácter que fazem todo o sentido e que são o resultado de uma observação atenta e interessada, mesmo que pelos piores motivos. Há, como todos estamos cansados de saber, um grave problema de mentalidade neste país. Todos se queixam da falta de uma cultura critica que permita que se escreva, se fale, se comente ou se reflicta sobre o trabalho do outro sem que com isso sejamos inevitavelmente queimados em praça pública como nos tristes e obscuros tempos da Inquisição. Já estamos cansados de saber que quem não está comigo, não tem que estar necessariamente contra mim. Que quem reflecte sobre o outro e desse pensamento conceba um conjunto de elogios à obra ou à pessoa, não tem que o fazer porque tem interesses escusos ou segundas intenções, ou por ser alguém que espera dessa análise tirar algum beneficio imediato. Por outro lado, na mesma ordem de ideias, não é assim tão claro que quem se posiciona de um ponto de vista menos favorável, tenha que ser alguém a quem tenhamos que desafiar para um duelo de morte em defesa da nossa honra. Devo dizer aqui e agora que tenho aprendido mais com quem me critica do que com quem me elogia, e pouco me importa se essas criticas tenham nascido de um desejo de atacar ou destruir, com motivações pessoais ou outras.

5. Esqueçamos, pois, tudo o que já pensávamos que sabíamos e coloquemo-nos perante o espaço vazio. Não iniciemos esta caminhada com ideias pré-concebidas. Procuremos dentro de cada um de nós o impulso da criação. Reflictamos sobre o que pretendemos dizer e não façamos da nossa arte ou da nossa vida um mero depositário de frustrações, mensagens ou moralidades que pretendemos por esse intermédio impor a todos os outros. Olhemos para nós como o resultado de um espelho que não reflectirá necessariamente a imagem que temos de nós próprios, mas como o produto de milhares de imagens diferentes, distorcidas, caleidoscópicas, de tonalidades diversas, consoante aquele que se colocar perante nós ou em contacto directo com a obra que lhe ofertamos. Limpemos as nossas mentes e avancemos. É uma medida de prevenção indispensável ao criador, para que este não se transforme num robot ou numa máquina de impressão de fórmulas gastas. Aqueles que pensamos que não nos entendem ou fazem de nós um julgamento diferente daquele a que nos achamos no direito de ter, apenas estão a honrar-nos com o tempo que gastam a cogitar sobre a nossa pessoa e a nossa criação. Honra lhes seja feita, porque sem eles não seríamos ninguém. A vida não é feita de monólogos. E mesmo estes, quando tem lugar em determinados períodos das nossas vidas, não o são porque sempre falamos para – e com – alguém, mesmo que seja connosco próprios, com os nossos alter egos, com as nossas partes boas ou más, com os nosso diabos ou os nossos anjos, que tão naturalmente lutam para conquistar o seu espaço no processo de decisão individual e diário com que somos confrontados.

6. Lembremos isto: o autismo, o egocentrismo, a arrogância são doenças sociais tão ou mais perigosas que qualquer outra que possa ser provocada por um mosquito tropical. As medidas de precaução contra estas moléstias passam também por uma limpeza, não do cutelo, da rua, do bairro, da escola ou do trabalho, mas pelos insondáveis e misteriosos caminhos da nossa mente e da nossa alma, aquilo que a que alguns chamarão de mentalidade e outros, mais filosoficamente, a razão que nos distingue das máquinas e dos computadores, o cerne de sermos gente que sofre, ama, chora, ri e procura fazer da sua passagem pelo mundo dos vivos algo que faça merecer o aplauso final de todos os outros, aquele mesmo que é dado em momento fúnebre, no desfecho de uma peça de teatro.

Mindelo, 15 de Julho de 2011




Hoje, a propósito da tolerância de ponto decretada pelo Governo de Cabo Verde para um dia de Campanha Nacional de Limpeza, no âmbito da luta contra a dengue, contou-me um amigo este episódio passado na cidade da Praia:

"Vou-te contar um caso que seria hilariante se não fosse triste: ontem passava ao lado da maternidade da Praia e vinha no carro falando sobre a campanha de limpeza, com a minha esposa e minha cunhada... quando sai voando uma casca de banana de um dos quartos da maternidade. Ou seja, o problema de limpeza não se resolve com tolerâncias de ponto para se limpar a esquina, resolve-se trabalhando a mentalidade."

Devo dizer que concordo com o que me disse esse meu amigo, mas também penso que é positivo que se tenha avançado para uma campanha de limpeza antes do mal ter acontecido, como em casos anteriores. Agora, isso é pouco. Acrescentar a este dia campanhas na comunicação social relativamente a hábitos de higiene ou destino a dar ao lixo que produzimos todos os dias, e mudar os hábitos e as mentalidades, é o próximo passo a dar.



Imagem deliciosa e fofa, da autoria de Eneias Rodrigues, do "candidato da cidadania" e o ex-Presidente da Câmara da Praia, actual ministro, futuro candidato a todos os cargos públicos hierarquicamente acima daquele que actualmente ocupa.





Assim ficou o meu gato ao assistir ao debate entre os candidatos à Presidência da República que (ainda) decorre na rádio e televisão.  Nem com café conseguiu manter-se acordado. 





Bom fim-de-semana para todos!






Porque é que as mulheres quando estão chateadas com alguma coisa dizem sempre que "não tem nada", mesmo sabendo que correm o risco de nós acreditarmos no que elas estão a dizer?

À melhor resposta, ofereço um café






Que legenda para esta imagem?

À melhor legenda, ofereço um café 




Nota: Só vivo me perguntando se os homens do Mindelo pensam mesmo que os piropos jogados ao vento para qualquer "rabo de saia" resultam em alguma coisa.

JA



Hoje, por motivos de comemorações, este blog vai mudar sua gerência durante um tempo curto (ou longo) dependendo do ponto de vista de quanto valem 24 hs.

Em Paris, a 01 de julho de (um ano não muito distante) surgia ou estrelava como dizem que os artistas não nascem aparecem e acontece o João branco (já conhecido por vocês). Um cidadão do mundo (como dizia um certo filósofo), que traz a arte no sangue, com bom-humor e excessiva criatividade.

Deixo aqui então meus parabéns sinceros e suspeitos.

JA