Declaração Cafeana

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O trono da vida & a volta à pedra

Era uma vez. É assim que tudo começa. Era uma vez uma mulher. Que foi muitas outras coisas. Que foi rainha criadora. Que foi actriz reconhecida. Que teve na alma & no corpo o poder de ser & morrer camaleão, prostituta, santa, ladrão de enterros, pregador.

Ela está só. Com as suas memórias & as suas jóias de valor duvidoso. Com a sua brancura & a sua palidez densa, inquestionável. Ela só tem existência no trono construído sob as ruínas do seu próprio passado e fala para os outros da mesma forma que fala para o vazio. Não está ninguém ali. Talvez. Não se sabe. Ela pensa: «aqui não está ninguém, mas aquela cadeira está mais vazia do que as outras, porque lá devia estar sentado o meu amor.»

Ela está só. Como estamos todos quando a morte nos bate à porta. Mas duvida que seja esse o caso. Acredita, num último & derradeiro sopro, que o seu final não está desenhado assim. Afinal de contas não se vestiu de branco para festejar o seu próprio enterro. Aí descobre o caminho sem nunca se desligar do sangrento cordão umbilical das suas venturosas reminiscências. E ela pensa: «enquanto tiver as minhas memórias, a morte não me virá buscar. Quando muito vou eu ao encontro dela. E sairei vitoriosa.»

Ela está só. Mesmo quando descobre o caminho & o seu amor de pedra. Mesmo quando deixa de poder lutar e só lhe resta a sublime contemplação. Encontra o seu centro num círculo laranja & na quietude de uma estátua. A felicidade está em voltar ao estado de pedra. O segredo está em caminhar para o abismo com a carga emocional de uma via-sacra. Da terra vieste, à terra voltarás. Mas passarás em primeiro lugar pela fria pedra que te alimentará e te dará um pequeno sopro de imaginária eternidade.

Pode ser também, como nos disse Francisco Camacho, um relato de gestos & sombras, sobre o poder. O poder de ser-se muita coisa & muita gente, pão & estrelas, mártir & cantador. E a posição em pedestal, que é uma espécie de trono, pode ser também prisão. Mas o poder da criação, mesmo que não a divina, mesmo que apenas e só a artística, representa a liberdade de ser-se generoso perante os outros & a vida, uma dádiva & um sacrifício.

Este texto de António Pedro, nascido em Cabo Verde, este fantástico pedaço de prosa surrealista tem muito por onde se lhe pegar. E se lhe peguei assim – e enquanto encenador escrevo agora na primeira pessoa – foi porque tive nesta jornada uma actriz corajosa & destemida que aceitou, sem pestanejar, entrar numa proposta estranha & invulgar, sustentada numa embrenhada narrativa, cheia de nós, sem lógica aparente, mas que nos pareceu, em primeiro lugar, uma bela homenagem ao ofício da criação de actores e actrizes, de teatro principalmente. Do teatro.

Aproveitamos para deixar um agradecimento muito sincero a todos quantos nos ajudaram na realização deste trabalho, principalmente ao António Santos, que com a sua imensa alegria de viver e generosidade, continua a ser um exemplo para nós que queremos preservar.

Nota: texto integrante do programa da peça «De Profundis», que estreia hoje, na Escola Superior de Teatro e Cinema.





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1 comentário:

Anónimo disse...

Para quê a existência para assistir e "ver" isto?