24/04/09

Diz-me a verdade acerca do amor



Há quem diga que o amor é um rapazinho,
E quem diga que ele é um pássaro;
Há quem diga que faz o mundo girar,
E quem diga que é um absurdo,
E quando perguntei ao meu vizinho,
Que tinha ar de quem sabia,
A sua mulher zangou-se mesmo muito,
E disse que isso não servia para nada.

Será parecido com uns pijamas,
Ou com o presunto num hotel de abstinência?
O seu odor faz lembrar o dos lamas,
Ou tem um cheiro agradável?
É áspero ao tacto como uma sebe espinhosa
Ou é fofo como um edredão de penas?
É cortante ou muito polido nos seus bordos?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Os nossos livros de história fazem-lhe referências
Em curtas notas crípticas,
É um assunto de conversa muito vulgar
Nos transatlânticos;
Descobri que o assunto era mencionado
Em relatos de suicidas,
E até o vi escrevinhado
Nas costas dos guias ferroviários.

Uiva como um cão de Alsácia esfomeado,
Ou ribomba como uma banda militar?
Poderá alguém fazer uma imitação perfeita
Com um serrote ou um Steinway de concerto?
O seu canto é estrondoso nas festas?
Ou gosta apenas de música clássica?
Interrompe-se quando queremos estar sossegados?
Ah! diz-me a verdade acerca do amor.

Espreitei a casa de verão,
E não estava lá,
Tentei o Tamisa em Maidenhead
E o ar tonificante de Brighton,
Não sei o que cantava o melro,
Ou o que a tulipa dizia;
Mas não estava na capoeira,
Nem debaixo da cama.

Fará esgares extraordinários?
Enjoa sempre num baloiço?
Passa todo o seu tempo nas corridas?
Ou a tocar violino em pedaços de cordel?
Tem ideias próprias sobre o dinheiro?
Pensa ser o patriotismo suficiente?
As suas histórias são vulgares mas divertidas?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Chega sem avisar no instante
Em que meto o dedo no nariz?
Virá bater-me à porta de manhã,
Ou pisar-me os pés no autocarro?
Virá como uma súbita mudança de tempo?
O seu acolhimento será rude ou delicado?
Virá alterar toda a minha vida?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.


W.H. Auden, em "Diz-me a verdade acerca do amor"

Imagem: beijo de Ingrid Bergman e Cary Grant em "Notorious", de Hitchcock



3 comentários:

  1. A verdade é que o amor é perigoso!

    "Em todas as esquinas da cidade
    nas paredes dos bares, à porta dos edifícios públicos, nas janelas dos autocarros
    mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
    na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
    no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
    um cartaz denuncia o nosso amor

    Em letras enormes do tamanho
    do medo da solidão da angústia
    um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
    se encontraram num bar de hotel
    numa tarde de chuva
    entre zunidos de conversa
    e inventaram o amor com carácter de urgência
    deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

    Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
    e fome de ternura
    e souberam entender-se sem palavras inúteis
    Apenas o silêncio
    A descoberta
    A estranheza
    de um sorriso natural e inesperado

    Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
    Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
    Embora subterrâneamente unidos pela invenção conjunta
    de um amor subitamente imperativo

    Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
    colado em todas as esquinas da cidade
    A rádio já falou
    A TV denúncia
    iminente a captura
    A policia de costumes avisada
    procura as dois amantes nos becos e avenidas
    Onde houver uma flor rubra e essencial
    é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
    fechada para o mundo
    É preciso encontrá-los antes que seja tarde
    Antes que o exemplo frutifique
    Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

    Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos

    Chamem as tropas aquarteladas na província
    convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
    Todos
    Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
    O perigo justifica-o
    Um homem e uma mulher
    conheceram-se, amaram-se, perderam-se no labirinto da cidade
    É indispensável encontrá-los, dominá-los, convencê-los
    antes que seja demasiado tarde
    e a memória da infância nos jardins escondidos
    acorde a tolerância no coração das pessoas

    Fechem as escola
    Sobretudo protejam as crianças da contaminação
    Uma agência comunica que algures ao sul do rio
    um menino pediu uma rosa vermelha
    e chorou nervosamente porque lha recusaram
    Segundo o director da sua escola é um pequeno triste
    Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
    Aplicado no entanto
    Respeitador da disciplina
    Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
    Ainda bem que se revelou a tempo
    Vai ser internado
    e submetido a um tratamento especial de recuperação
    Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital
    que o diagnóstico se faça no período primário da doença
    E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
    de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

    Está em jogo o destino da civilização que construímos
    o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
    das normas de discriminação racial
    o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
    a verdade incontroversa das declarações políticas

    Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
    precisamos da sua experiência onde: quer que se escondam
    ao temor do castigo

    Que todos estejam a postos
    Vigilância é a palavra de ordem
    Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
    À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
    Telefonem à policia ao comissariado ao Governo Civil
    não precisam de dar o nome e a morada
    e garante-se que nenhuma perseguição será movida
    nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

    Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
    comissões de vigilância. Está em jogo a cidade,
    o país, a civilização do ocidente
    esse homem e essa mulher têm de ser presos
    mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

    Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
    a inviolabilidade do domicílio, o habeas corpus, o sigilo da correspondência
    Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
    espreitam a rua pelo intervalo das persianas
    beijam-se, soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
    É preciso encontrá-los
    É indispensável descobri-los
    Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
    É possível que cantem
    Mas defendam-se de entender a sua voz
    Alguém que os escutou
    deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
    E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
    respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
    Lhe lembravam a infância
    Campos verdes floridos
    Água simples correndo
    A brisa nas montanhas

    Foi condenado à morte é evidente
    É preciso evitar um mal maior
    Mas caminhou cantando para o muro da execução
    foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
    um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

    Impõe-se sistematizar as buscas
    Não vale a pena procurá-los
    nos campos de futebol, no silêncio das igrejas, nas boites com orquestra privativa
    Não estarão nunca aí
    Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
    A identificação é fácil
    Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
    um pássaro desconhecido e admirável
    ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa,
    Será então aí
    Engatilhem as armas, invadam a casa, disparem à queima roupa
    Um tiro no coração de cada um
    Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar
    Mas estará completo o esconjuro
    e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

    Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
    Quer dizer que fostes contagiados
    Que estais também perdidos para nós
    É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte
    o tiro indispensável
    Não há outra saída
    A cidade o exige
    Se um homem de repente interromper as pesquisas
    e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
    já sabeis o que tendes a fazer
    Matai-o
    Amigo irmão que seja
    Matai-o
    Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
    Matai-o
    Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
    os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
    e deslizem depois numa tristeza liquida
    até ao fim da noite
    Evitai o apelo a prece derradeira
    um só golpe mortal misericordioso basta
    para impor o silêncio secreto e inviolável

    Procurem a mulher o homem que num bar
    de hotel se encontraram numa tarde de chuva
    Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
    senhas, salvo-condutos, horas de recolher
    censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
    Para bem da cidade, do país, da cultura
    é preciso encontrar o casal fugitivo
    que inventou o amor com carácter de urgência

    Os jornais da manhã publicam a notícia
    de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
    numa rua serena debruada de acácias
    Um velho sem família, a testemunha diz
    ter sentido de súbito uma estranha paz interior
    uma voz desprendendo um cheiro a primavera
    o doce bafo quente da adolescência longínqua
    No inquérito oficial atónito afirmou
    que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
    e caminhavam envoltos numa cortina de música
    com gestos naturais alheios
    Crê-se
    que a situação vai atingir o climax
    e a polícia poderá cumprir o seu dever

    Um homem uma mulher, um cartaz de denúncia
    A voz do locutor definitiva nítida
    Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais

    É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE

    Já não basta o silêncio, a espera conivente, o medo inexplicado
    a vida igual a sempre, conversas de negócios
    esperanças de emprego, contrabando de drogas, aluguer de automóveis
    Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
    ou marinheiro em terra afogar a distância
    no corpo sem mistério, da prostituta anónima
    Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
    amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
    constroem com urgência um universo do amor
    E é preciso encontrá-los
    E é preciso encontrá-los

    Importa perguntar em que rua se escondem
    em que lugar oculto permanecem resistem
    sonham meses futuros, continentes à espera
    Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
    abrigo fraternal deixam correr o tempo
    de sentidos cerrados ao estrépito das armas
    Que mãos desconhecidas apertam as suas
    no silêncio pressago da cidade inimiga

    Onde quer que desfraldem o cântico sereno
    rasgam densos limites entre o dia e a noite
    E é preciso ir mais longe
    destruir para sempre o pecado da infância
    erguer muros de prisão em circulos fechados
    impor a violência a tirania o ódio

    Entanto das esquinas escorre em letras enormes
    a denúncia total do homem da mulher
    que no bar em penumbra numa tarde de chuva
    inventaram o amor com carácter de urgência

    COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

    Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
    o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas
    encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
    há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

    É na cidade que é preciso procurá-los
    incansavelmente sem desfalecimentos
    Uma tarefa para um milhão de habitantes
    todos são necessários
    todos são necessários
    Não sem preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial
    e o ministro das Finanças
    tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública

    Depois das seis da tarde é proibido circular
    Avisa-se a população de que as forças da ordem
    atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
    depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
    uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
    um marinheiro grego que regressava ao seu navio

    Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
    disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
    Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
    O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas
    do Governo pelo engano cometido
    Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
    Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
    e depois o homem e a mulher que a policia procura
    representam um perigo para nós e para a Grécia
    para todos os países do hemisfério ocidental
    Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
    que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
    sujo insignificante e porventura bêbado

    SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA

    Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
    Escondidos em qualquer parte da cidade
    Repete-se é indispensável encontrá-los
    Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
    destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
    Apela-se para o civismo de todos os habitantes
    A questão está posta É preciso resoIvê-la
    para que a vida reentre na normalidade habitual
    Investigamos nos arquivos Nada consta
    Era um homem como qualquer outro
    com um emprego de trinta e oito horas semanais
    cinema aos sábados à noite
    domingos sem programa
    e gosto pelos livros de ficção cientifica
    Os vizinhos nunca notaram nada de especial
    vinha cedo para casa
    não tinha televisão,
    deitava-se sobre a cama logo após o jantar
    e adormecia sem esforço

    Não voltou ao emprego o quarto está fechado
    deixou em meio as «Crónicas marcianas»
    perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
    à saída do hotel numa tarde de chuva
    O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
    que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
    Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
    Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
    Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
    era bem paga e tinha semana inglesa
    passava as férias na Costa da Caparica.

    Ninguém lhe conhecia uma aventura
    Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
    quando o pai sofreu um colapso cardíaco
    Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa
    e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu

    Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas
    o último número de uma revista de modas
    a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
    Ficou provado que não se conheciam
    Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
    sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
    mergulharam cantando no coração da cidade

    Importa descobri-los onde quer que se escondam
    antes que seja demasiado tarde
    e o amor como um rio inunde as alamedas
    praças becos calçadas quebrando nas esquinas

    Já não podem escapar Foi tudo calculado
    com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
    A policia e o exército estão a postos Prevê-se
    para breve a captura do casal fugitivo
    (Mas um grito de esperança inconsequente vem
    do fundo da noite envolver a cidade
    au bout du chagrin une fenêtre ouverte
    une fenêtre eclairée)".

    (Daniel Filipe)

    a) RB, anónimo por obrigação

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  2. BELO POEMA ANÓNIMO, DO DANIEL FILIPE

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  3. Sim. A Invenção do Amor. Texto fundamental da poesia em língua portuguesa.

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