02/01/09

Declaração Cafeana





A passagem d'ano é a mais fantástica festa duma cidade que adora festas. Tirando a época do festival de teatro Mindelact que, por ligação especial, recomendo a todos aqueles que apreciam artes cénicas, é nestes últimos dias de Dezembro que mais vale a pena uma visita à cidade do Porto Grande. Há dois aspectos que gostaria de salientar desta passagem, que são precisamente, o início e o fim da festa.

Ao banharem-se no Ganges, para o primeiro banho de cada ano, os fiéis do hinduísmo purificam a alma, isto é, libertam-na dos pecados cometidos desde as três vidas anteriores até à encarnação presente. Durante o banho, eles cantam: «Ó Sagrada Mãe Ganga, ó Yamuna, ó Godavari, ó Sarasvati, ó Narmada, ó Sindhu, ó Kaveri, que vocês se comprazam em se manifestar nestas águas com que me purifico.»

No Mindelo, o início do banho colectivo dá-se há meia noite da primeira noite do ano, numa praia bem no meio da bela baía da cidade, cujas águas durante o ano só servem para limpar os cachorros sarnentos da urbe, merecendo por isso o baptismo pouco recomendável de "praia dos cachorros". Querem maior lição de democracia e de fé do que essa? Para já, vai ao banho gente de todos os extractos sociais, e depois esse banho de imersão de anticorpos é efectuado nas águas mais desprezadas pelos habitantes nos restantes dias do ano. Querem uma vacina contra doenças? Tomem o primeiro banho do ano na praia de catxorr! E nos últimos anos, melhor ainda, porque toma-se o tal banho purificador com o céu a explodir de cores em cima da nossa cabeça! E talvez seja a altura, a melhor e a mais justificada, para se pode gritar, a plenos pulmões, "soncent é sabe, é sabe pa cagá!". Digo: só quem não viveu esta versão mindelense do banho de purificação indiano, pode desprezar o grito de amor à cidade que, em uníssono, é lançado aos ventos, sob o olhar atento do Monte Cara.

Se o início da festa é quase orgásmico, o final é de uma confraternização e boa energia arrepiantes. Esse mesmo povo que se banhou e fez a festa, uns mais fuscos que outros desaguam na Praça Nova a partir das 08 de manhã e ali esperam pela passagem da banda municipal que inicia um percurso pelos bairros, ruas e becos do Mindelo tocando um recordai ritmado e afinado, todo ele baseado em instrumentos de sopro e numa pequena bateria com um bombo e duas caixas de ritmo. A banda vai tocando, o povo atrás e à frente cantando, pára e arranca, pára e arranca. Sem pressas. Sem stress. Sem desvarios. Sem violência de nenhuma espécie. Apenas com aqueles que ficaram em casa, saindo pelas portas ou aparecendo nas janelas e varandas, para cumprimentar, abraçar e beijar quem ainda se encontra em festa, ao som de uma banda que nos faz lembrar, pela situação, som, cores e humanismo, ter saído de um filme de Kusturica.

Há quem, como eu, se vá deitar mais cedo e suprima o meio, para melhor apreciar esse fantástico fim de festa. São nestas primeiras horas do ano, em que acompanhamos a banda municipal tocando sempre o mesmo tema sem cansar-se nem nos cansar; em que vemos o povo em festa cumprimentando aquela outra parte que desperta; acompanhando o cortejo multifacetado que nestas circunstâncias peculiares se forma nas primeiras horas da primeira manhã de cada ano; que pensamos que afinal de contas nem tudo está perdido, e que esta energia que imana das gentes não pode ser apenas um sonho irreal de um povo em festa mas sim um vincado sinal de esperança no futuro.


4 comentários:

  1. Com um encanto diferente, talvez mais contido do que aí em S. Vicente, umas das tradições mais bonitas, que tive o privilégio de conhecer na Praia, é exactamente a de dar boas festas- é lindo! Este ano tive muita sorte e fartaram-se de me dar boas festas com música de fundo!

    Bom ano novo!

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  2. Feliz Ano Novo

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  3. BELO TEXTO JOÃO.

    NEM TUDO É PODRIDÃO

    BOM ANO

    TCHALE

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  4. Catarina, e é tão bom!

    Anónimo, obrigado e igualmente.

    Tchalê, essa frase resume bem o espírito desta declaração: nem tudo é podridão. Bom ano pa bo!

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