
I
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.
II
As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda a parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.
III
Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros, sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele, inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.
IV
Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?
V
Mesa, madeira posta
próximo dos homens pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós,
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.
VI
O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas,
agora, atónito, abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.
VII
Cavalo, reprodutor
de luz nos prados, quando
respira, os brônquios;
dois frémitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.
VIII
Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar, e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.
IX
Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.
X
O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar,
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura,
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos, com o suor da estrela
tatuada na testa.
Poema de Carlos de Oliveira, sobre Guernica de Picasso
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.
II
As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda a parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.
III
Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros, sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele, inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.
IV
Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?
V
Mesa, madeira posta
próximo dos homens pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós,
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.
VI
O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas,
agora, atónito, abre as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.
VII
Cavalo, reprodutor
de luz nos prados, quando
respira, os brônquios;
dois frémitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.
VIII
Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar, e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.
IX
Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.
X
O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar,
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura,
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos, com o suor da estrela
tatuada na testa.
Poema de Carlos de Oliveira, sobre Guernica de Picasso
Pôrra João!!!! Quase caí para o lado. Um mo(nu)mento alto do Margoso. De levar às lágrimas.
ResponderEliminarOs que não conheciam escusam de agradecer. É só ver ... e ler (e vice versa). Duas obras primas!
SEM MAIS PALAVRAS!!!!!
Nós é que agradecemos, JC (não confundir com Jesus Christ), a tua sugestão...
ResponderEliminarConcordo, esse par e de ver, ler e reler cada vez que se visita o cafe.
ResponderEliminarCom tanta brutalidade neste mundo este quadro nao perde a sua actualidade.
Gracias ao dono e gerente do cafe, JB e ZC :-)
Nem mais, Sara!
ResponderEliminarMadrid é a minha cidade europeia preferida (logo a seguir a Lisboa, é claro!). Madrid é uma cidade altamente cativante, e eu tenho a sorte de poder ir "quase" quando me apetece porque estou aqui ao lado! Num dos meus passeios fui ao Centro Nacional de Arte Rainha Sofia e, lá está ele, enorme, maravilhoso e arrepiante! "Quase caí para o lado!" Mas acompanhado por este Poema de Carlos Oliveira (que eu desconhecia), ganha vida! THANK U
ResponderEliminarFantástico, Anónimo. Um testemunho de quem viu a obra «live». Abr.
ResponderEliminarAnónimo.
ResponderEliminarTenho essa visita na minha agenda à muito tempo. Um dos motivos é o Guernica, claro. Com o poema do Carlos de Oliveira a ser lido in-presença!
Prometo documentar!
ZC
É a vantagem de viver nas Europas. Ficamos à espera, ZC!
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